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29-07-2021        Público

Quantos outros Wiriyamus continuam a esconder-se nos arquivos de operações do Exército colonial? Podemos facilmente descobrir. Tudo o que é necessário é uma comissão de verdade e reconciliação. Já estaremos prontos para que uma comissão desse tipo escave as vozes por trás dos números silenciosos? Acredito que estamos.

Eu era um jovem quando Wiriyamu chegou às capas dos jornais a 10 de Julho de 1973. Aos 22 anos, com um passaporte português sem apelido, eu tinha chegado a Londres a 16 de Agosto de 1972, pobre e sabendo falar pouco inglês, talvez até mais pobre do que Salazar quando este deixara o Vimieiro para ir para Coimbra no início do século XX. Mas eu estava determinado a ter sucesso. O meu objectivo era a Universidade de Oxford, o dele era sufocar Portugal com burocracia e terror!

Nos 38 anos seguintes acompanhei esta história de forma intermitente. Cataloguei os papéis do padre Hastings; mergulhei em arquivos; fotocopiei recordações da guerra de libertação; acumulei fotografias, vídeos e gravações áudio; tive formação em historiografia oral; aprendi a retirar dados de propaganda dos movimentos de libertação; e desenvolvi capacidades para usar as experiências de vida para orientar o meu trabalho. Em 1984 estava pronto para ir para Lisboa. Mas havia um obstáculo no caminho: eu era um apátrida. Eu era um súbdito colonial de um império enterrado. Portugal estava a cortejar as pós-colonialidades. Até esta questão de ser apátrida ser resolvida, eu tinha que aguardar.Cheguei a Lisboa em meados dos anos 90 e dirigi-me para a Torre do Tombo, o edifício projectado pelo arquitecto Arsénio Cordeiro e construído em betão e calcário. Janelas que mais parecem escotilhas náuticas lançam lágrimas de luz solar para dentro do arquivo. Austero mas também acolhedor em alguns locais, guardava no seu interior aquilo que eu procurava: documentos da PIDE. As gárgulas de Arsénio Cordeiro miraram-me enquanto eu caminhava para a escuridão lá dentro. As fontes primárias sobre Wiriyamu não se conseguiam localizar, excepto 48 relatórios da Direcção Geral de Segurança (DGS), alguns dos quais baseados em informações obtidas por padres e acólitos. A ausência de dados não significa que Wiriyamu tenha sido uma ficção, ou que os eventos relatados eram mentira. Se algum desses pressupostos fosse verdade, mais concretamente que apenas arquivos escritos validam argumentos acerca do passado, estaríamos todos a espetar facas nas costas uns dos outros acerca das narrativas sobre a morte de Catarina Eufémia em 1954. Mas não estamos. Em vez disso, aceitamos os relatos de memórias acerca dela como sendo História verídica, suficientemente sólida para a tornar um ícone e a face da resistência.

Eu sabia que tinha que escavar as vozes que tinham visto, e sobrevivido ao massacre, algo que a polícia política e o Exército não tinham feito, para bem da nação. Depois passei anos a entrevistar pessoas em vários continentes, identificando os mortos, investigando os cinco campos da morte de Wiriyamu, fotografando os restos de ossos, quando tal era permitido, e recriando os acontecimentos no palco onde haviam decorrido. Viu com os seus próprios olhos? Estava lá quando isto aconteceu? Se não se importa, mostre-me as feridas. Posso fotografá-las?

A ressurreição

Eis aqui uma versão resumida do que descobri nesses dois conjuntos de fontes: 28 entrevistas gravadas; 96 notas de campo assinadas; 102 fontes de dados assinaladas em fragmentos anotados; e 24 inquiridos adicionais que foram apoiados por uma série de confirmadores de factos que trabalharam de perto com 216 famílias afectadas. Destes inquiridos, 107 eram de Chaworha, 30 de Wiriyamu, 30 de Juawu, 14 de Riachu e 35 de Djemusse.

A 16 de Dezembro de 1972, um jovem oficial recebeu ordens para se apresentar no quartel-general do Exército português da região de Tete. Chegou às seis e meia da manhã e disseram-lhe para pegar na sua unidade e ir expulsar os terroristas infiltrados no triângulo de Wiriyamu. Três coordenadas definiam este triângulo: a estrada principal que ligava Tete s Changara, o rio Zambeze a sudeste, e o rio Luenha, afluente do Zambeze a sul. Dentro deste triângulo estavam cinco aldeias: Chaworha, Juawu, Wiriyamu, Djemusse e Riachu.

A Força Aérea Portuguesa bombardeou o perímetro do triângulo para facilitar os alvos para as forças terrestres. Foi deixada uma abertura para apanhar quem escapasse. Cinco helicópteros aterraram dentro do triângulo. Três destes, sabe-se onde: um deles, perto de Chaworha, desembarcou agentes secretos uniformizados, liderados por Chico Cachavi e Johnny Kongorhogondo. Dois helicópteros mantiveram-se por perto, um ao pé de Juawu e o outro nas cercanias de Djemusse, mas nenhum deles aterrou – os tocos de árvores cortadas, com cerca de um metro de altura, impediam-no.

Chico e Johnny reuniram toda a gente perto do quintal do chefe da aldeia. Dada a confusão que se instalou de seguida, é difícil estabelecer a exacta sequência dos acontecimentos após esta ordem. As pessoas da aldeia reuniram-se no local indicado, vigiadas por soldados uniformizados, enquanto elementos da unidade de Comandos levaram à força os que se tinham escondido. Chico disse a um visitante da aldeia de Djemusse para regressar à aldeia central de Wiriyamu com uma mensagem para os seus habitantes: Fiquem aí quietos!

Em Chaworha, a multidão aumentava. Johnny manteve-se ao lado de Chico, enquanto o Exército colonial isolava o perímetro. Por que razão se tinham recusado a mudar para M’pharhamadwe, como lhes tinha sido indicado? O chefe de Chaworha respondeu que estavam à espera de uma garantia de que teriam acesso a água e terra fértil para os seus animais. Os aldeamentos estratégicos estavam claramente mal preparados para a vida pastoral – até as autoridades portuguesas os viam como «abrigos de cabras».

Chico manteve-se em frente a uma grande árvore de mopane. E foi então que Consonbera, amante da antiga mulher de Johnny, foi visto a caminhar em direção a Chico. Uma densa área de boas casas atrás dele pertenciam às sete famílias mais abastadas, nas margens do ribeiro seco junto ao campo de futebol de Chaworha. Parece que Consonbera não tinha noção do terror que ia enfrentar. Johnny reconheceu-o logo e matou-o a tiro. Não se sabe se terá feito isto por despeito pessoal ou para assinalar aos restantes que iniciassem o assassínio das pessoas reunidas.

E assim começou o apagamento de Chaworha. Nos minutos que se seguiram, 53 aldeãos sucumbiram às rajadas. Enquanto os restantes tentavam escapar, Chico gritava: «Aphani wense!Aphani wense! Matem-nos a todos. Não deixem ninguém vivo. Nada de testemunhas.» Por esta altura, os soldados coloniais tinham-se dividido em dois grupos. Um recolheu os corpos e colocou-os num monte, a que depois pegaram fogo. O outro grupo formou em semicírculo, para matar quem quer que tentasse escapar. António Mixone, que foi testemunha ocular, estava no fundo do monte de corpos, tal como estava o seu irmão. Ambos tinham tombado, desmaiados mas sem ferimentos. António recuperou a consciência quando o calor começou a golpear a sua pele. Desatou a correr, tal como fez o seu irmão mais novo, Domingos, de 4 anos. Quatro outras pessoas escaparam da pira: Serina, de 13 anos, filha de Irisone; Tembo, de 5 anos, filho de Batista; Manuel, de 13 anos, filho de Mantrujare; e Podista, mulher de Mchenga. Os soldados portugueses despejaram então mais uma rajada de balas na pira. Uma das balas atingiu Mixone num ombro. Ignorando o ferimento, correu até ficar a salvo.

Noutros locais dentro do triângulo, os soldados estavam a toda a força. A limpeza em Juawu começou quando o helicóptero se elevou para partir. Há poucas provas concretas de como decorreram as mortes. Uma testemunha, escondida por trás de um molho de juncos altos numa ravina próxima, viu soldados da primeira unidade da 6.ª Companhia de Comandos a despoletar granadas e a atirá-las para dentro de cabanas pejadas de gente, enquanto outros atiravam sobre quem tentava escapar. Por outras palavras, a limpeza em Juawu foi rápida e eficaz. Um fugitivo escapou antes da carnificina. Colocou uma cabra às costas e dois bebés em cada braço e atravessou a estrada que levava até ao Cruzamento 18. Então ouviu o som de rotores a segui-lo. Manteve-se agachado para «evitar as pás», mas continuou a correr até cair. Como uma libélula, o helicóptero por cima dele também parou, quase imóvel. Viu o piloto a dirigi-lo para a estratégica aldeia de M’pharhamadwe. Levantou-se e correu e parou, desta feita para beber água de um ribeiro. Por fim o helicóptero deixou-o em paz e partiu.

A limpeza de Wiriyamu foi igualmente rápida e eficaz. O Exército colonial encheu de gente a maior cabana da aldeia, o que foi fácil de fazer, pois as pessoas tinham-se lá reunido para uma festa. Várias granadas foram deixadas lá dentro, depois a cabana foi fechada, após o que as granadas explodiram e rebentaram com o tecto de palha. Terminou aí a maior matança de Wiriyamu. Com esta limpeza terminada antes do pôr do sol, as unidades dos Comandos portugueses foram montar acampamento a alguma distância da aldeia, apanhando pelo caminho alguns fugitivos.

A limpeza de Djemusse demorou mais tempo. Chico e Johnny participaram nos violentos interrogatórios que se seguiram. Onde estavam a esconder membros da Frelimo? Sabiam onde eram as bases deles? «Revela o que sabes ou então morres», disseram-lhes. A certa altura um helicóptero pairou por cima e à esquerda do baobá que marcava a entrada de Djemusse, para apanhar um punhado de «delatores» para irem para interrogatórios mais intensos no quartel-general da polícia. Um informador sob tortura gritava: «Não, por favor chega. Por favor, pára. Eu não sei nada. Pára, pára, Chico, pelo amor de Deus.»

Ao cair da noite os interrogatórios já tinham dado o que tinham a dar. Já não havia mais «confissões» para extrair. Os homens de uniforme armados dividiram-se em dois grupos: um formou um longo cordão, enquanto o outro se manteve em semicírculo, para reunir fugitivos para a matança final. Seguindo instruções, os habitantes de Djemusse formaram uma fila em frente às suas casas ainda a fumegar. Chico estava encostado ao baobá. Os homens armados deram ordens para fugirem se quisessem manter-se vivos, o que fizeram. Não se sabe exactamente quantos escaparam. Um informador recorda-se de ter corrido aos ziguezagues para dentro de uma cabana cheia de fumo.

O helicóptero partiu, levando suspeitos para interrogatório. Os soldados, por sua vez, juntaram-se aos comandantes de unidade, preparando a caça aos fugitivos nos três dias seguintes. Informações acerca da perseguição nesses três dias são virtualmente inexistentes, excepto alguns fragmentos que sugerem a existência de baixas.

Dos 385 mortos, 118 morreram em Chaworha, 55 em Juawu, 41 em Wiriyamu, 104 em Djemusse e um em Riachu. Setenta homens, 46 mulheres e dois bebés ainda dentro da barriga das mães morreram em Chaworha. Trinta e dois homens e 33 mulheres morreram em Juawu. Wiriyamu perdeu 16 homens e 25 mulheres. Djemusse perdeu 45 homens e 50 mulheres. Em Riachu, apenas se conseguiu identificar uma mulher. Nos meus dois textos mais recentes identifico pelo nome e características particulares cada um dos 385 mortos. O massacre eliminou um pouco mais de 28 por cento da população total das cinco aldeias afectadas. Em termos proporcionais, embora evidentemente não em magnitude total, seria o equivalente a matar 2 461 276 de habitantes de Portugal em 1972.

Verdade e salvação

Até hoje, o Exército colonial considera a obliteração de Wiriyamu como um dano colateral, o resultado inevitável de uma operação de limpeza denominada Marosca, uma de muitas levadas a cabo numa área de terroristas. Quando foi pressionado a confirmar o massacre de Wiriyamu, o falecido general Kaulza de Arriaga negou qualquer culpabilidade, em parte para evitar inquéritos em casos semelhantes noutros locais. Ao que sei, ainda está por elaborar uma lista exaustiva dessas limpezas. Antes da revolução de 25 de abril de 1974 tais investigações teriam implicado oficiais do Exército, o que teria implicações e reflexos na liderança política em Lisboa.

Reflecti profundamente desde a publicação dos meus trabalhos acerca de Wiriyamu, como que para escutar os melhores anjos da nossa natureza. A Guerra Colonial foi um vasto teatro de conflito entre duas certezas políticas, a liberdade e a intransigência, lideradas por dois adversários simétricos. Um militarizava os seus objectivos para enganar e suplantar artilharia pesada. O outro utilizou tudo o que tinha no seu arsenal, desde napalm até armas fornecidas pela NATO, tanto contra guerrilheiros como contra civis. As verdadeiras vítimas eram assassinos vestidos com uniformes e que esqueceram a sua consciência, serviram e continuam a servir no Exército colonial, e os seus alvos. Os que conseguiram evitar a morte ficaram marcados pela experiência nos campos da morte portugueses na África colonial.

Wiriyamu apresenta uma característica única: os mortos e os seus assassinos tinham uma história para contar. Quantos outros Wiriyamus continuam a esconder-se por trás desses números nos arquivos de operações do Exército colonial? Podemos facilmente descobrir. Tudo o que é necessário é uma comissão de verdade e reconciliação, baseada numa amnistia para todos os que contarem a verdade. Pergunto-me se já estaremos prontos para que uma comissão desse tipo escave as vozes por trás dos números silenciosos. Acredito que estamos. Se conseguimos produzir um vencedor do Prémio Nobel e um secretário-geral das Nações Unidas, então seguramente podemos estabelecer uma comissão nacional. É o único passo lógico para nos dirigirmos em direcção ao esclarecimento pós-colonial. Devemos isto tanto à História quanto às gárgulas de Arsénio Cordeiro, que esperam que retiremos as verdades dos arquivos da monocromática Torre do Tombo. A alternativa é continuar a criar paisagens imaginárias com certezas sentimentais acerca do império e a nossa conduta em sua defesa durante a Guerra Colonial.


 
 
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Mustafah Dhada



 
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