Em tempo de paz, nunca, como ao longo desta pandemia, os governos de todo mundo despejaram tanto dinheiro sob a forma de crédito e subvenções sobre as economias. O dinheiro veio de onde sempre vem - dos bancos centrais e do crédito. Dado que as economias continuaram a funcionar, embora a meio gás, não se verificaram, em geral, situações graves de escassez de abastecimento, a não ser do bem mais precioso nestas circunstâncias – os cuidados de saúde. Tinha de ser assim e, por isso, nem o mais ferrenho dos liberais teve coragem de protestar contra “o despesismo”. Pelo contrário, quase todos, incluindo os liberais, protestaram, mas só contra a falta de apoios públicos.
No processo de construção de respostas aos impactos da pandemia, o governo português destacou-se como um dos que mais apostou nas moratórias, em detrimento de subvenções. Na altura, a opção (controversa) foi justificada com a necessidade de não se aumentar a dívida pública. Agora, que as moratórias estão a terminar, talvez o caminho seguido se confirme como irracional.
Moratórias são uma forma de crédito. No fundo significa, “não pagas agora, pagas depois com juros”. Subvenções são transferências unilaterais do Estado para as empresas e as pessoas, também financiadas a crédito. É um facto que no fim da linha está sempre o crédito, no entanto, existe uma diferença importante entre moratórias e subvenções. No caso das moratórias, a responsabilidade pelo pagamento diferido no tempo incumbe a cada devedor em separado, é individualizada. No caso das subvenções, essa responsabilidade incumbe ao Estado, ou seja, a todos nós, mutualizando assim a dívida.
Como muito bem é explicado no Barómetro nº 23 do Observatório Sobre Crises e Alternativas[1] o governo ao optar pela individualização da responsabilidade da dívida jogou no “alívio presente”, gerando “riscos financeiros futuros”. O total das moratórias atinge quase 40 mil milhões de euros: um pouco mais de 60% são empréstimos a empresas e quase 40% empréstimos a famílias. É cerca de três “bazucas”. Impõe-se uma intervenção política cuidadosa e ofensiva no seu acompanhamento e gestão, entretanto dificultada pela pulverização individualizada de devedores.
No nosso entender o governo fez uma opção errada. No lugar de uma dívida mutualizada que o país teria de enfrentar coletivamente, temos agora uma multidão de dívidas privadas a que cada um por si, uns mais do que outros, terá de fazer face. Na situação criada, cada um dos endividados pode ser comparado a um dominó na posição, tem-te não caías. Os condicionalismos da recuperação da atividade económica provocarão a queda de alguns dos endividados, desequilibrarão outros e induzirão problemas no setor bancário. O resultado será, porventura, uma cascata de dominós cujas consequências serão bem piores que os impactos de um acréscimo da dívida pública.
Neste quadro, as políticas em socorro dos setores mais afetados devem ser acompanhadas por outras de estímulo aos setores capazes de induzir arrastamento económico com potencial de criação de emprego com qualidade. Todavia, é preciso ter em conta a especificidade do tecido empresarial do país - onde é muito grande o peso das pequenas e médias empresas - e, ainda, considerar as condições concretas de cada território.
Não é fácil, mas é possível, meter travões na cascata de dominós que está montada.
_____________
[1] Frade, C.; Santos, A. C. e Teles, N. (2021) A moratória de crédito a empresas e famílias: alívio presente, riscos financeiros futuros, Barómetro das Crises, nº 23. Lisboa: Observatório sobre Crises e Alternativas. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/index.php?id=6522&id_lingua=1&pag=6560