O #metoo começou a fazer-se sentir em Portugal e algumas reações indignadas reforçam a evidência da urgência deste movimento de desnaturalização da violência contra as mulheres. Os homens que afirmam sentir-se vigiados nos atos, escrutinados na vontade, reagem à perda de privilégio. O desejo feminino, esse sim, foi sempre vigiado; o corpo das mulheres foi sempre foi controlado; a nossa liberdade nunca deixou de ser disputada.
Exigir razões para o tempo que as mulheres levam a denunciar um caso ou a não nomear agressores é não ter entendido o que quer que seja até agora. Julgá-las é reproduzir os mecanismos da violência de género, que classificam a vítima e humanizam o opressor.
O que vemos é socialmente construído. É com a linguagem disponível que damos nome ao que observamos e é com o que sabemos que atribuímos sentido à realidade. Não só o leque de comportamentos sexuais considerados desviantes foi sempre muito mais alargado para as mulheres, como a adjetivação desses comportamentos foi substancialmente mais depreciativa, assertiva e violenta.
Rejeitar classificações é reivindicar o direito a reescrever a narrativa para lá dos termos impostos. Essa disputa ocorre sobre um tabuleiro desequilibrado, em que o escrutínio ininterrupto e naturalizado sobre as mulheres tornou sempre mais fácil exigir-lhes, culpá-las, sugar-lhes a energia, ignorar-lhes o discurso e o mérito.
A forma como cada uma experiencia a desigualdade de poder depende de muitas mais variáveis do que poderia enumerar. Algumas são estruturais, como a posição de classe ou o lugar na escala de privilégio racial, outras serão individuais.
Uma vez que o patriarcado está silenciosamente entranhado nas instituições que nos formaram, é comum naturalizar comportamentos sexistas, dos mais evidentes aos micromachismos, ver inevitabilidade no inaceitável ou culpa na injustiça sofrida. Na experiência partilhada com outras mulheres, no conhecimento gerado, são construídas ferramentas, conceitos para ressignificar experiencias vividas. Compreender essas experiências dentro da estrutura de poder, desnaturalizá-las e nomeá-las como violentas não é sempre automático. Quando acontece, permite-nos escolher tomar uma posição na luta.
Desigualdade, violência e desvantagem estrutural não envolvem necessariamente rejeição da convivência ou da cumplicidade estabelecida em termos desiguais. Mas a resistência faz-se de formas nem sempre evidentes, por dentro e por fora das estruturas de poder, em silêncio e nas ruas, nos tribunais e em casa, no confronto e na empatia. Julgar como cada mulher lida com as violências experienciadas é mais uma forma de as classificar. Os mecanismos de silenciamento tendem a ser reproduzidos, por isso a denúncia tem que ser coletiva.
A maior armadilha do patriarcado é fazer as mulheres acreditarem que vivem em competição, que a boa mulher é a que se distingue das outras. Ser vulgar ou ordinária não é desejável na ficção que escreveram por nós. O #metoo é um movimento de sororidade, que recusa essa narrativa, porque vem dizer que estamos aqui umas para as outras, passámos pelo mesmo, não deixamos que nos classifiquem, e temos o direito a contar a nossa história a partir do lugar em que a vivemos e quando decidirmos que está na hora.