A pandemia ajudou a pôr a nu os limites e distorções da lógica mercantilista do neoliberalismo, designadamente em áreas decisivas como a saúde e a educação. Alterou ritmos de vida, conceções de tempo e de espaço e abriu caminho a novas dinâmicas de empreendedorismo e de negócio, mas também estimulou novas patologias sociais e vulnerabilidades.
Uma sociedade meritocrática é aquela onde a mobilidade social e as classes médias ganharam solidez, na sequência de uma saudável igualdade de oportunidades na base do talento e capacidades de cada um. Nas democracias liberais do Ocidente a bandeira da “meritocracia” tornou-se um desígnio político das elites transformadoras ao longo do século XX. Mas, ao mesmo tempo, quer a “mão invisível” do mercado, quer a ação interventiva do Estado não só não superaram as barreiras de classe, como permitiram que os mecanismos de reprodução permanecessem mais fortes do que as portas da mobilidade social ascendente.
Apesar do papel decisivo das políticas distributivas do Welfare State na Europa ao longo das três décadas douradas de crescimento (1945-1975), a fase seguinte de globalização neoliberal veio intensificar ainda mais as desigualdades entre pobres e ricos. Embora os investimentos públicos em educação, saúde e proteção social permaneçam fundamentais, o “fator classe” continua a privilegiar os descendentes da elite, ainda que os títulos académicos alcançados pelos filhos dos trabalhadores possuam o mesmo valor formal. Na porta de acesso a uma carreira (ou seja, na eficácia do “empoderamento”), a “mão visível” acaba tendo mais força do que a dita “mão invisível” do mercado.
Entre as linhas de análise sociológica que presidiram ao ensaio que publiquei em 2012 em torno da classe média portuguesa (“A Classe Média: Ascensão e Declínio”, FFMS) propunha-se, em primeiro lugar, conceber esta categoria fundada não apenas no critério económico, mas também na base de outra variáveis tais como o nível de educação, estatuto socioprofissional, capital cultural, etc.; em segundo lugar, procurou interpretar os processos de estruturação da classe média na sua relação não apenas com as condições materiais e estilos de vida, mas também dando atenção à importância das subjetividades e expectativas como fatores definidores da “classe média”.
Em Portugal, a chamada classe média é sobretudo composta por categorias qualificadas e relativamente estáveis de funcionários e trabalhadores assalariados, vinculadas quer ao setor público quer aos serviços e à economia privada (incluindo as profissões liberais), o que representa não um grupo homogéneo, mas antes um conjunto muito variado de camadas da população.
A classe média define-se por exclusão de partes: por um lado, demarca-se dos segmentos mais pobres e excluídos ou do operariado manual, e, por outro, trata-se de setores que permanecem distantes dos estratos privilegiados localizados no topo da pirâmide da estratificação. Acresce que a imagem de desafogo da classe média funciona na sociedade como um barómetro decisivo da harmonia e coesão social, visto que um tal cenário é expressão de que o chamado “elevador social” e a meritocracia podem funcionar. São, no fundo, os setores intermédios da sociedade que podem alavancar a economia – pela via do investimento, do empreendedorismo e do consumo – e imprimir sustentabilidade ao sistema no seu conjunto.
É claro que a componente económica ocupa um lugar central, uma vez que é o rendimento das famílias que permite ajustar os seus modos de vida e padrões de consumo aos ritmos do crescimento económico. Porém, numa “sociedade de afluência” o desejável desafogo económico só ganha sentido se for conjugado com educação, cultura e conhecimento, isto é, os indicadores de desenvolvimento que promovem a estabilidade dinâmica do sistema.
Mas é fundamental recordar que sem a função reguladora e distributiva do Estado, as desigualdades seriam bem mais gritantes do que já são. Quer a nível nacional, quer na escala internacional e global, sabemos bem a importância, económica, social, cultural, política, etc., das ditas classes médias. Se as categorias da força de trabalho com menos recursos continuam a ser as que mais diretamente contribuem para o crescimento económico, também sabemos que, devido aos baixos níveis dos seus rendimentos, são, regra geral, as menos atingidas pelas políticas fiscais e pelos impostos diretos.
O caso dos EUA é um exemplo paradigmático. Para além da relativa estagnação dos salários reais nas últimas décadas, uma tendência geral dos países desenvolvidos, tem-se verificado neste país (e com maior incidência no governo Trump) uma política fiscal que atingiu diretamente a classe média.
Com efeito, a redução constante dos impostos pagos ao Estado (a nível local e federal) pelas 400 famílias de maiores rendimentos, desde os anos cinquenta do século passado – de 70% em 1950, reduziu para 47% em 1980 e para 23% em 2018 – regressou a um valor próximo dos da década de 1920 nesse país. Uma crítica contundente a essa realidade (“The Triumph of Injustice”, de E. Saez e G. Zucman, 2019) mostrou que tal situação resultou numa penalização essencialmente da classe média americana. E os autores do estudo citado rejeitam a ideia de que “não há nada a fazer” quanto a isso, lembrando que sempre que se aumentaram os impostos sobre os mais ricos e o controlo fiscal foi mais rigoroso, as classes médias beneficiaram e as desigualdades foram contidas.
É claro que a matriz social portuguesa obedece a lógicas e tradições distintas, mas a estagnação dos salários e o seu baixo nível refletem-se nos índices de pobreza. Estudos do Banco de Portugal mostraram que as transferências públicas (apoio à família, à habitação, ao desemprego, doença, invalidez, educação, formação e inclusão social) têm um efeito significativo na distribuição da riqueza.
Os dados disponíveis revelam que, excluindo essas transferências, as desigualdades seriam bem mais intensas (segundo o índice de Gini passariam de 0,36 para 0,38 no ano de 2015), ou seja, as políticas sociais são a almofada protetora dos mais pobres. Além disso, as desigualdades de rendimento dos agregados familiares são menores do que quando o cálculo é efetuado sobre os indivíduos, o que se prende com o peso significativo das mulheres portuguesas no mercado de trabalho.
Para além da importância das transferências sociais no rendimento das famílias, deve salientar-se que esse fator se torna ainda mais significativo quando se trata de um país, como Portugal, onde as discrepâncias na distribuição do rendimento são tão flagrantes.
Os dados estatísticos tratados pelo economista Eugénio Rosa ilustram algumas das disparidades económicas entre as famílias portuguesas. Por exemplo, considerando os diferentes escalões de rendimento (do IRS) e a sua evolução recente, entre os escalões 01 (o mais baixo) e 11 (o mais elevado), a diferença era de 156 vezes superior neste último escalão, no ano de 2011, tendência que se acentuou ao longo da última década, situando-se em 189 vezes, no ano 2019.
Mas, mais do que isso, a mesma fonte revela que os escalões intermédios do rendimento são os que mais viram os seus ganhos reduzidos entre 2011 e 2019 (nomeadamente os escalões 06, 07, 08 e 09 do IRS), o que comprova claramente a tendência de estagnação ou de quebra dos rendimentos da classe média, iniciada com a chegada da troika, em 2011, e que não conseguiu recuperar até ao atual ciclo de pandemia.
Relatórios recentes da OCDE vão no mesmo sentido. Em 2018 os 10% mais ricos do nosso país controlavam 52,1% da riqueza criada. Por sua vez, os níveis salariais dos 20% de famílias com melhor remuneração eram 5,6 vezes superiores aos 20% de famílias com salários mais baixos. Como sabemos, o período da crise financeira de há dez anos foi bastante penalizador para as famílias portuguesas, fazendo disparar a incidência da pobreza, que, segundo os dados do INE, se agravou de 17,9% (em 2009) para 24,2% (em 2014), descendo novamente no período seguinte para 17,2%, em 2018 (PORDATA, «Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (2004‑2019)».
Deve também recordar-se que as perdas de rendimento mais acentuadas ocorreram entre os decis mais elevados do rendimento equivalente, o que significa uma redução substancial do poder de compra da classe média. Isto reflete-se no plano subjetivo, e as expectativas são um elemento fulcral da economia.
Um documento recente da OCDE onde há referências específicas ao nosso país – “How’s Life in Portugal?, 2020” – revela que, na perceção subjetiva das famílias, o risco de pobreza se relaciona sobretudo com o endividamento, em particular com as despesas com a habitação (21% despendem mais de 40% do rendimento nesse item) e que cerca de 35% dos portugueses temem cair na pobreza se tiverem de renunciar a três meses de salário.
Se é verdade que o vírus não escolheu entre ricos e pobres, os meios preventivos a que uns e outros puderam e podem recorrer, continuam a pautar-se por desigualdades e barreiras abissais. As estatísticas das mortes estão aí para o provar. A pandemia ajudou a pôr a nu os limites e distorções da lógica mercantilista do neoliberalismo, designadamente em áreas decisivas como a saúde e a educação. Alterou ritmos de vida, conceções de tempo e de espaço e abriu caminho a novas dinâmicas de empreendedorismo e de negócio, mas também estimulou novas patologias sociais e vulnerabilidades.
Até agora, ela revelou-se sobretudo um acelerador de processos já em curso, sendo o campo da digitalização, da fragmentação do trabalho, da precariedade e da “plataformização” dos empregos alguns exemplos disso. Por outro lado, as linhas orientadoras do Plano de Recuperação e Resiliência sugerem um redirecionamento do modelo económico vigente, ao priorizar o digital, o ambiente e o combate às desigualdades.
Resta saber se o país será capaz de mobilizar as suas forças vivas na base de projetos sustentáveis e coerentes em todas essas matérias, o que requer um plano estratégico que não só revigore a economia, mas reequilibre a sociedade, o território e a demografia do país. Sem uma economia incrustada na sociedade e ao serviço da coesão dificilmente o elevador social voltará a funcionar.