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27-04-2021        Público

Se este “QI” significasse Quociente de Inteligência seria bom sinal. Se assim fosse, Portugal estaria seguramente no grupo da frente dos países europeus quanto aos seus níveis de desenvolvimento. Mas não é disso que se trata. O “I” deste QI refere-se a “Indicar” e o “Q” a inicial maiúscula da palavra “Quem”. Quer isto dizer que o critério mais importante na tomada de decisões é o “Quem indica” (QI). A celebração da liberdade, em 1974-1975, pareceu remeter para o caixote do lixo da história a cultura do favor, da dependência paroquial e do servilismo. Mas não demorou muito a que nos interstícios das organizações, em diversos setores do mercado de emprego, despontassem os novos abusos, protofascismos e assédios de variados contornos. A democracia de protocolo galgou terreno e aí reside a importância do “fator QI”, que é como quem diz, o poder discricionário do mais forte.

Já sabemos que a cunha (ou o “pedido”) é uma velha “instituição” inscrita na cultura portuguesa. Durante o Estado Novo tal prática era o espelho de uma sociedade vergada ao destino fatalista, à submissão perante quem tinha influência e poder. Lembro-me bem de uma das primeiras vezes que fui a Lisboa, em plena década de 1960, de boleia com alguém que se dirigia à fala com a Dona Maria, a conhecida governanta do Doutor Salazar, com vista a facilitar o acesso de um familiar a um emprego na administração pública. Essa época não deixou saudades e o 25 de Abril abriu as portas da esperança a um Portugal democrático, onde tudo isso iria mudar. Foi, no entanto, Sol de pouca dura. O atual processo de erosão da democracia opera em diferentes níveis (segundo um estudo do ICS/ISCTE-IUL, apenas 10% acreditam que vivemos numa “democracia plena”, jornal Expresso, 23.04.2021). Mas, para além do sistema político, é na própria sociedade e nas suas organizações que reside a raiz do problema. Enquanto a antiga prática do “pedido” transportava uma atitude caritativa e de resignação, pautada pela humildade de gente simples e honrada, a nova subserviência é o reverso da prepotência que se insinuou nos interstícios da sociedade e em muitas das suas instituições de referência.

Criaram-se leis de contratação e regulamentos de carreiras profissionais, nomeadamente na administração pública, que prescrevem um conjunto mais ou menos minucioso de requisitos para que o/a candidato/a a determinado posto seja avaliado/a na base do seu mérito. No campo do funcionalismo público, a avaliação do mérito exige a nomeação de júris – supostamente neutros e qualificados – caucionados por editais publicados em Diário da República. Tudo isso é reflexo de maturidade democrática. A democracia institucionalizou-se, mas, como há mais de um século advogava o autor de “a lei de ferro da oligarquia” (Robert Michels), “a democracia, a partir de um certo momento da sua evolução, vai fazendo um movimento de retrocesso”. Com efeito, nos dias que correm, torna-se cada vez mais evidente a metamorfose em curso, não apenas nos altos cargos, mas também no quotidiano dos empregos e serviços. É que essa institucionalização e o seu formalismo são tão sofisticados quanto a sua essência se revela cada vez mais “fake". Ou seja, no protocolo somos muito zelosos e avançados, enquanto na prática pautamo-nos muitas vezes pela falsidade, pelo cinismo e desrespeito pelos valores humanos. Em diversos setores da economia, em serviços privados (grandes empresas, colégios, IPSS, escolas, associações) e nas PMEs onde o trabalho intensivo, e barato, é o principal fator de competitividade, sobressai o culto do chefe, que parece funcionar como terapia para apaziguar os demónios psicológicos e os complexos de inferioridade de pequenos déspotas, cuja mediocridade é disfarçada pelos constantes encómios que recebem do seu séquito de seguidores incondicionais.

Ao longo das últimas décadas abrimos inúmeras autoestradas e SCUTs, em geral com portagens pagas. Mas a maior autoestrada que se abriu e se foi alargando por dentro das instituições, sem pagamento de portagem, foi a do carreirismo e do caciquismo. Existem, sem dúvida, bons exemplos de liderança, diretores de serviços, dirigentes empresariais ou desportivos que gerem o grupo pelo exemplo, pelo diálogo e valorizam o mérito e a lealdade, fatores fundamentais para qualquer organização coesa e competitiva. Mas, lamentavelmente, têm-se multiplicado as situações de prepotência e abuso, o que, conjugado com a vulnerabilidade dos subordinados, faz crescer a dependência, o seguidismo e os comportamentos abusivos de chefias que não sabem o que é liderança (muito menos exercê-la).

Falando de um setor que conheço bem, é com tristeza que se observa que as instituições de ensino superior (IES) deixaram de ser referências e exemplos a seguir no plano da transparência, da meritocracia, da defesa dos valores humanos e do espírito crítico. Há uns anos escrevi um texto neste jornal com um título provocatório (“Os lambe-cus”, PÚBLICO, 26.10.2016) que me custou alguns ódios de estimação, bem visíveis nos silêncios e olhares de alguns conhecidos. Embora a crítica vertida nesse texto não tivesse nenhum destinatário específico, algumas reações posteriores mostraram-me que afinal tinha vários, sem o saber. Rendidas ao mercado dos títulos e às lógicas quantitativistas da produtividade académica, as universidades – empurradas pelo RJIES – abdicaram em larga medida da democracia interna e do espírito colegial. Um estudo de 2018 sobre “assédio moral” no trabalho, realizado por investigadores da Universidade de Évora (divulgado neste jornal), já revelava que 75% dos inquiridos tinham sido “vítimas de pelo menos uma situação de assédio moral ou psicológico no trabalho”, sendo o segmento do ensino superior o mais grave nessa matéria (jornal PÚBLICO, 12.08.2018).

A segmentação crescente do mercado de trabalho ajudou a traçar novas divisões abissais, não apenas entre classes, entre a elite e o povo, entre ricos e pobres, entre o Norte e o Sul, etc., mas entre chefias e subordinados, que podem até ser “colegas” que trabalham e convivem diariamente no mesmo espaço de trabalho, incluindo no mundo académico. As universidades tornaram-se organizações segregadoras, que acolhem e promovem no seu seio a precariedade e a subalternização (quando não a exploração objetiva) de muitos jovens cientistas e docentes em início de carreira (ou que sonham com ela). É verdade que a lógica de massificação das IES convive com a reprodução das desigualdades, mas o seu caráter elitista reconfigurou-se. Uma larga parte dos novos licenciados e graduados estão a caminho do precariado e da proletarização, enquanto a “elite” universitária se autoconfinou numa pequena “clique” privilegiada, composta por aqueles que, em devido tempo, atingiram rapidamente o topo da carreira e logo se instalaram, fechando a porta atrás de si e monopolizando poder e “status”.

As barreiras à renovação da elite académica e ao fortalecimento da democracia interna têm como reverso a sua impotência para promover elites transformadoras capazes de pensar o país para além da esfera tecnocrática e do calculismo eleitoralista e imediatista. O jogo de poderes paralelos que corrói as instituições é o principal combustível de sistemas burocráticos em que cada um se engana a si próprio, acreditando ou fingindo acreditar no dever cumprido. Numa sociedade onde a reverência, o protocolo e os salamaleques tomaram o lugar da frontalidade e da troca de ideias, não nos podemos admirar que o ideário democrático e os valores humanos sejam a prazo substituídos pela lógica da delação, pela cultura da vénia, abrindo espaço a uma nova “caça às bruxas” dirigida aos/às que não se resignam.


 
 
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Elísio Estanque



 
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