Se este “QI” significasse Quociente de Inteligência seria bom sinal. Se assim fosse, Portugal estaria seguramente no grupo da frente dos países europeus quanto aos seus níveis de desenvolvimento. Mas não é disso que se trata. O “I” deste QI refere-se a “Indicar” e o “Q” a inicial maiúscula da palavra “Quem”. Quer isto dizer que o critério mais importante na tomada de decisões é o “Quem indica” (QI). A celebração da liberdade, em 1974-1975, pareceu remeter para o caixote do lixo da história a cultura do favor, da dependência paroquial e do servilismo. Mas não demorou muito a que nos interstícios das organizações, em diversos setores do mercado de emprego, despontassem os novos abusos, protofascismos e assédios de variados contornos. A democracia de protocolo galgou terreno e aí reside a importância do “fator QI”, que é como quem diz, o poder discricionário do mais forte.
Já sabemos que a cunha (ou o “pedido”) é uma velha “instituição” inscrita na cultura portuguesa. Durante o Estado Novo tal prática era o espelho de uma sociedade vergada ao destino fatalista, à submissão perante quem tinha influência e poder. Lembro-me bem de uma das primeiras vezes que fui a Lisboa, em plena década de 1960, de boleia com alguém que se dirigia à fala com a Dona Maria, a conhecida governanta do Doutor Salazar, com vista a facilitar o acesso de um familiar a um emprego na administração pública. Essa época não deixou saudades e o 25 de Abril abriu as portas da esperança a um Portugal democrático, onde tudo isso iria mudar. Foi, no entanto, Sol de pouca dura. O atual processo de erosão da democracia opera em diferentes níveis (segundo um estudo do ICS/ISCTE-IUL, apenas 10% acreditam que vivemos numa “democracia plena”, jornal Expresso, 23.04.2021). Mas, para além do sistema político, é na própria sociedade e nas suas organizações que reside a raiz do problema. Enquanto a antiga prática do “pedido” transportava uma atitude caritativa e de resignação, pautada pela humildade de gente simples e honrada, a nova subserviência é o reverso da prepotência que se insinuou nos interstícios da sociedade e em muitas das suas instituições de referência.
Criaram-se leis de contratação e regulamentos de carreiras profissionais, nomeadamente na administração pública, que prescrevem um conjunto mais ou menos minucioso de requisitos para que o/a candidato/a a determinado posto seja avaliado/a na base do seu mérito. No campo do funcionalismo público, a avaliação do mérito exige a nomeação de júris – supostamente neutros e qualificados – caucionados por editais publicados em Diário da República. Tudo isso é reflexo de maturidade democrática. A democracia institucionalizou-se, mas, como há mais de um século advogava o autor de “a lei de ferro da oligarquia” (Robert Michels), “a democracia, a partir de um certo momento da sua evolução, vai fazendo um movimento de retrocesso”. Com efeito, nos dias que correm, torna-se cada vez mais evidente a metamorfose em curso, não apenas nos altos cargos, mas também no quotidiano dos empregos e serviços. É que essa institucionalização e o seu formalismo são tão sofisticados quanto a sua essência se revela cada vez mais “fake". Ou seja, no protocolo somos muito zelosos e avançados, enquanto na prática pautamo-nos muitas vezes pela falsidade, pelo cinismo e desrespeito pelos valores humanos. Em diversos setores da economia, em serviços privados (grandes empresas, colégios, IPSS, escolas, associações) e nas PMEs onde o trabalho intensivo, e barato, é o principal fator de competitividade, sobressai o culto do chefe, que parece funcionar como terapia para apaziguar os demónios psicológicos e os complexos de inferioridade de pequenos déspotas, cuja mediocridade é disfarçada pelos constantes encómios que recebem do seu séquito de seguidores incondicionais.
Ao longo das últimas décadas abrimos inúmeras autoestradas e SCUTs, em geral com portagens pagas. Mas a maior autoestrada que se abriu e se foi alargando por dentro das instituições, sem pagamento de portagem, foi a do carreirismo e do caciquismo. Existem, sem dúvida, bons exemplos de liderança, diretores de serviços, dirigentes empresariais ou desportivos que gerem o grupo pelo exemplo, pelo diálogo e valorizam o mérito e a lealdade, fatores fundamentais para qualquer organização coesa e competitiva. Mas, lamentavelmente, têm-se multiplicado as situações de prepotência e abuso, o que, conjugado com a vulnerabilidade dos subordinados, faz crescer a dependência, o seguidismo e os comportamentos abusivos de chefias que não sabem o que é liderança (muito menos exercê-la).
Falando de um setor que conheço bem, é com tristeza que se observa que as instituições de ensino superior (IES) deixaram de ser referências e exemplos a seguir no plano da transparência, da meritocracia, da defesa dos valores humanos e do espírito crítico. Há uns anos escrevi um texto neste jornal com um título provocatório (“Os lambe-cus”, PÚBLICO, 26.10.2016) que me custou alguns ódios de estimação, bem visíveis nos silêncios e olhares de alguns conhecidos. Embora a crítica vertida nesse texto não tivesse nenhum destinatário específico, algumas reações posteriores mostraram-me que afinal tinha vários, sem o saber. Rendidas ao mercado dos títulos e às lógicas quantitativistas da produtividade académica, as universidades – empurradas pelo RJIES – abdicaram em larga medida da democracia interna e do espírito colegial. Um estudo de 2018 sobre “assédio moral” no trabalho, realizado por investigadores da Universidade de Évora (divulgado neste jornal), já revelava que 75% dos inquiridos tinham sido “vítimas de pelo menos uma situação de assédio moral ou psicológico no trabalho”, sendo o segmento do ensino superior o mais grave nessa matéria (jornal PÚBLICO, 12.08.2018).
A segmentação crescente do mercado de trabalho ajudou a traçar novas divisões abissais, não apenas entre classes, entre a elite e o povo, entre ricos e pobres, entre o Norte e o Sul, etc., mas entre chefias e subordinados, que podem até ser “colegas” que trabalham e convivem diariamente no mesmo espaço de trabalho, incluindo no mundo académico. As universidades tornaram-se organizações segregadoras, que acolhem e promovem no seu seio a precariedade e a subalternização (quando não a exploração objetiva) de muitos jovens cientistas e docentes em início de carreira (ou que sonham com ela). É verdade que a lógica de massificação das IES convive com a reprodução das desigualdades, mas o seu caráter elitista reconfigurou-se. Uma larga parte dos novos licenciados e graduados estão a caminho do precariado e da proletarização, enquanto a “elite” universitária se autoconfinou numa pequena “clique” privilegiada, composta por aqueles que, em devido tempo, atingiram rapidamente o topo da carreira e logo se instalaram, fechando a porta atrás de si e monopolizando poder e “status”.
As barreiras à renovação da elite académica e ao fortalecimento da democracia interna têm como reverso a sua impotência para promover elites transformadoras capazes de pensar o país para além da esfera tecnocrática e do calculismo eleitoralista e imediatista. O jogo de poderes paralelos que corrói as instituições é o principal combustível de sistemas burocráticos em que cada um se engana a si próprio, acreditando ou fingindo acreditar no dever cumprido. Numa sociedade onde a reverência, o protocolo e os salamaleques tomaram o lugar da frontalidade e da troca de ideias, não nos podemos admirar que o ideário democrático e os valores humanos sejam a prazo substituídos pela lógica da delação, pela cultura da vénia, abrindo espaço a uma nova “caça às bruxas” dirigida aos/às que não se resignam.