Serpins, a seguir ao 25 de Abril. A festa foi muito bonita: 428 pessoas foram votar para as eleições dos órgãos da comunidade local de baldios, pela primeira vez com duas listas. “Foram votar para não votarem”, dizia um amigo. Compreendo o argumento, tendo em conta que uma das pretensões da lista vencedora é continuar a delegar os poderes de administração na Junta de Freguesia, sem prazo nem condições. Mas só quem está de fora é que não percebe o que está em jogo neste lugar, que poucos conhecem a não ser quem cá vive.
“Serpins ainda é Lousã?”, perguntava um lousanense a uma serpinense, no centro de saúde. “Sim, faz parte da Lousã e com muito orgulho”, respondia ela. A conversa tem lugar na Lousã, porque na extensão de saúde de Serpins não conseguem médico todos os dias. A conversa revela uma ferida antiga: a marginalização de Serpins, um concelho destituído, com uma longa história de resistência e defesa dos baldios.
Vivo em Serpins desde 2012. Vim para estudar baldios – terras comunitárias, na sua maioria, florestadas, que ocupam metade das serras do norte e centro do país. A minha filha nasceu aqui. Longe da minha família. Comprei casa aqui. Voto aqui. Vou conhecendo a terra onde estou, e as serras. E foi com tristeza que li nas redes sociais comentários da lista vencedora como “a vitória dos serpinenses”.
Os baldios são uma instituição particular. Resultam duma das primeiras leis após a Revolução de Abril – a lei dos baldios. Apesar de poucas pessoas fazerem uso dos baldios para apascentar gado, recolher matos e lenha, o conceito de comunidade de compartes foi sendo progressivamente expandido para incluir residentes e pessoas que desenvolvem no lugar actividades florestais, agrícolas ou pastoris.
E quem vive nas serras hoje? Vivem pessoas que nasceram lá, e pessoas que vieram de outros lugares. De outros municípios. De outros países. Estrangeiros residentes, alguns em processo de obter a nacionalidade portuguesa. Pessoas com elevada consciência ambiental, que perderam casas nos incêndios de 2017, preocupadas com o destino das serras, com a desertificação e perda de infra-estruturas, com a qualidade da água, com a biodiversidade. Pessoas que saíram das cidades. Pessoas que querem levar outras formas de vida.
Os baldios são a “porta de entrada” para este outro conceito de cidadania – de baldeania, como propus com outros autores no livro Escolas Comunitárias COMUNIX, resultado dum projecto europeu sobre a participação em áreas comunitárias. Podem ser uma oportunidade de inclusão, ou de exclusão.
A entrada do novo causa medo. O medo provoca reacções defensivas, sobre quem conta como serpinense. Onde se traça a linha? Portugueses? Eleitores da junta? Filiados do partido dominante? Membros das coletcividades locais? O que está em jogo é uma mistura de poder político, reconhecimento social, e o futuro duma terra que se pode tornar uma distopia ambiental e ruína em poucos anos, ou um lugar “paradisíaco”, um refúgio para pessoas que não querem ser turistas no chão que pisam. É neste chão que crescem crianças e javalis, bolotas, acácias e eucaliptos, abelhas melíferas e vespas asiáticas. É neste chão que rolam pedras e se agarram raízes. É neste chão que vemos o que se passa no país todo: a falta de participação e inclusão gera desejos de pertença. Pessoas que não só não querem sair daqui, como querem ser daqui. E viver para ficar.