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24-03-2021        Público

Um marciano que descesse à Terra no nosso país e pudesse descodificar o manancial legislativo e de instituições dedicadas à organização do território, à sustentabilidade ambiental, à gestão das florestas, etc., concluiria seguramente que acabou de aterrar numa região exemplar na sua capacidade organizativa e no cuidado que é dedicado ao seu património natural e ambiental. Essa seria uma imagem coerente com a beleza da nossa paisagem, sobretudo quando vista à distância. É impressionante o volume de entidades e de legislação dedicadas a estas áreas, desde orientações, nacionais e internacionais, da ONU e da OCDE até à profusão de leis e regulamentos do Estado português, passando pelas prioridades da União Europeia.

É claro que o triunfo da racionalidade ocidental foi uma enorme conquista, que nos ajudou a deixar para trás o mundo das trevas, abrindo caminho ao domínio da ciência sobre o dogma religioso. Os grandes filósofos racionalistas e positivistas (R. Descartes, I. Kant e A. Comte, entre outros) mostraram a força do pensamento lógico e do planeamento na “administração das coisas”. A impessoalidade, a especialização técnica dos cargos, a autonomia e a divisão de tarefas são requisitos de uma administração burocrática eficaz, mas estas premissas alteraram-se profundamente ao longo do século XX. Ou seja, a burocracia moderna tornou-se um sistema em que quem decide não conhece os detalhes da execução e quem executa não tem poder de decisão. É nesse contexto que cresce o poder paralelo, os jogos e rituais onde germinam as oligarquias, as zonas cinzentas das dependências e reverências cegas, etc. Segundo essa lógica perversa, a sequência eficácia-erros-correção deixa de funcionar e o statu quo tende a perpetuar-se infinitamente, somando-se um departamento a outro, um regulamento a seguir a outro, sempre que o resultado não corresponde ao esperado.

No momento em que o país dá início à aplicação dos fundos europeus da “bazuca”, a crise sanitária e económica da covid-19 e os próprios desígnios do PRR desafiam as instituições democráticas a fazer um balanço profundo para detetar os erros cometidos em diversas matérias, nomeadamente as relacionadas com o ambiente e o território. Se levarmos a sério a situação de encruzilhada em que o país se encontra hoje – mais ainda com a aproximação das próximas eleições autárquicas –, temos a obrigação de parar para pensar. Pensar, fazendo o contraponto entre as intenções e a prática, entre as medidas legislativas existentes e a situação efetiva da nossa paisagem natural. É preciso mudar de paradigma na resposta a problemas sobejamente identificados, tais como: gestão do território, desenvolvimento sustentável, reindustrialização, ameaças ambientais, desequilíbrios demográficos, transição para o digital, coesão social, etc. etc. Nestas e noutras matérias os diagnósticos são conhecidos desde há muito e boa parte das soluções encontram-se plasmadas nas nossas leis, em harmonia com as diretivas internacionais. Os apoios financeiros da UE apontam na mesma direção. Vale a pena enumerar algumas das prioridades rastreadas no papel (e vertidas na Lei) para percecionarmos melhor o contraste entre o papel e a realidade. Por exemplo, na área do desenvolvimento sustentável, os dispositivos legais e princípios éticos são inúmeros, quer no plano nacional quer internacional. Ao abrigo do Business Council for Sustainable Development que obedece a orientações difundidas a partir da OCDE, a delegação portuguesa (BCSD – Portugal) desenvolveu recentemente um estudo onde procedeu à definição de um conjunto de indicadores e índices de desenvolvimento sustentável: indicadores ambientais (72); indicadores económicos (29); indicadores sociais (22); e indicadores institucionais (9).

Por seu lado, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) assinala a necessidade de reforçar a coesão social e territorial” (artigo 174.º). As orientações da Comissão Europeia, como a Estratégia Anual para o Crescimento Sustentável (2020), Pacto Ecológico Europeu e as mais recentes medidas de resposta à crise da covid-19 estabelecem os seis pilares prioritários: transição ecológica, transformação digital, crescimento inteligente e sustentável, coesão social e territorial, politicas ambientais e tecnológicas para a próxima geração, empreendedorismo na economia digital, etc. Quer os diagnósticos mais antigos, quer o atual Mecanismo de Recuperação e Resiliência, tomam como áreas decisivas a defesa do ambiente, a sustentabilidade, a coesão social e territorial, etc.

Em Portugal, a legislação é igualmente abundante, incluindo o Regime Jurídico de Conservação da Natureza e Biodiversidade (Dec.-Lei 142/2008 e Dec.-Lei 242/2015); a Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei 31/2014); o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão do Território (Dec.-Lei 80/2015), para dar apenas alguns exemplos. No campo da regulamentação sobre áreas protegidas existe também uma profusa produção legislativa e uma apreciável rede de instituições dedicadas a estes assuntos. O Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF, I.P.), por exemplo, tutela um conjunto de 25 áreas protegidas, distribuídas por: 1 parque nacional; 13 parques naturais; 9 reservas naturais e 2 paisagens protegidas. Consultando a Portaria n.º 166/2019 (Diário da República, 1.ª série, n.º 103, de 29 de maio de 2019), ficamos a conhecer a complexidade orgânica do ICNF e a parafernália de departamentos, nacionais e regionais, que monitorizam o nosso território, incluindo áreas protegidas e parques florestais.

Ninguém põe em dúvida a competência nem a capacidade dos muitos técnicos e serviços dedicados a um setor tão importante na coesão territorial (bem como no equilíbrio ambiental e demográfico). Mas quem anda regularmente por áreas protegidas e parques naturais de norte a sul do país não pode deixar de presenciar a degradação, a ausência de infraestruturas, a falta de sinalização adequada, de vigilância, a abundância de lixeiras ilegais, os mamarrachos, pocilgas e estruturas que agridem o ambiente e a paisagem protegida. Isto sem esquecer os projetos megalómanos de turismo de luxo e campos de golfe, muitas vezes em completo desrespeito pela riqueza paisagística e pelas comunidades locais. Não se trata de perseguir culpados. Trata-se sim de chamar a atenção para problemas complexos que exigem visão estratégica. Basta olhar para a flagrante contradição entre tamanha diversidade normativa, de um lado, e a proliferação do caos (sem esplendor) em zonas protegidas e na floresta portuguesa de um modo geral, de outro. Com um tão vasto leque de divisões e dispersão de responsabilidades, não duvido que os próprios poderes municipais (e as CIMs) terão dificuldades em promover projetos fundados em lógicas de governança capazes de por os objetivos estratégicos e o património ambiental à frente das questiúnculas, corporativismos e burocracias que minam os aparelhos.

Como nos ensinou Max Weber, o sentido da ação está sempre para lá da intenção subjetiva dos atores. Para captarmos o sentido sociológico dos comportamentos importa identificar as conexões em que se insere a ação, sabendo que para os próprios protagonistas o sentido da ação não se encontra no resultado final, mas sim na própria conduta e nas vantagens imediatos (mesmo que se limitem à justificação dos cargos que ocupam). Em vez do habitual queixume que sempre aponta o dedo acusador à Europa, como se o país fosse uma jangada (de cortiça) que se quer isolar no meio do Atlântico, há que assumir a nossa quota parte de autonomia para responder com imaginação aos desafios e ameaças que só coletivamente podemos enfrentar. E só as lideranças visionárias e libertas do espartilho burocrático podem estar à altura desses desafios.


 
 
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Elísio Estanque