Tenho defendido ao longo dos anos que o modo como Portugal se integrou na União Europeia veio consolidar a posição semi-periférica do país no sistema mundial, uma posição assumida sobretudo depois do século XVIII e mantida até aos nossos dias. É próprio da condição semi-periférica actuar como correia de transmissão entre os países centrais do sistema e os países periféricos (menos desenvolvidos). No contexto europeu, Portugal foi o país que durante mais tempo assumiu esse papel.
Em algum momento foi mesmo simultaneamente centro de um império e colónia informal da Inglaterra. Depois da Segunda Guerra Mundial, as razões geoestratégicas fizeram com que Portugal tivesse de resignar-se a não ser libertado do fascismo, e foram essas também as razões que em última instância ditaram que o império português se mantivesse até 1975, quando os países mais desenvolvidos se tinham já desfeito dos seus impérios (pelo menos, formalmente) na década de 1960.
A mesma resignação semi-periférica fez com que Portugal se integrasse na UE sem reivindicar as suas relações históricas com outros países, apesar de ser o país europeu que mais contactou durante mais tempo com mais regiões do mundo; assumindo ser inferioridade tudo aquilo em que era diferente da UE e que teria sido precioso manter e proteger, como, por exemplo, a agricultura familiar e a pesca artesanal; aceitando acriticamente (ao contrário da Irlanda) as directivas europeias para ser o bom aluno, um esforço que mais tarde a troika viria a mostrar ter sido em vão; e, sobretudo, sem compensar o custo do euro com um investimento excepcional na educação, na investigação científica e na cultura, que permitisse a prazo diversificar e qualificar a nossa sociedade e economia, libertando-a do inferno dos salários baixos e de pensões de miséria.
Trinta e cinco anos depois é fácil ver que se cumpriu o destino: Portugal progrediu até ao limite do que era permitido a um país semi-periférico. E aí permanecemos. E tudo leva a crer que aí permaneceremos quando se concretizar o plano de recuperação e resiliência (PRR). O PRR segue acriticamente as receitas vindas da UE (resiliência, transição digital e transição climática), em vez de proceder a uma análise profunda, retrospectiva e prospectiva, das realidades do país e de, à luz dela, propor variações que sejam não apenas benéficas para o país mas para o conjunto da União, uma vez que a vitalidade desta depende da vitalidade dos seus membros. Mas o que mais intriga é que não se tome em conta os desafios que a pandemia vem colocar às sociedades europeias no seu conjunto e que todo o nosso desempenho seja orientado pelo desejo de sermos aprovados por algo que está para além de nós, a UE. Uma reflexão sobre a nossa realidade levaria a questionar muitas das opções do PRR. Selecciono apenas a área que me está mais próxima: a investigação científica e inovação.
Basta tomar em conta a qualificação educacional média dos nossos empresários e a estrutura do nosso tecido industrial para concluirmos que, no contexto português, pôr a ciência ao serviço das empresas é consolidar a condição semi-periférica. O mantra da ciência ao serviço da inovação serve os interesses dos países centrais do sistema mundial porque estes investiram durante muito tempo (e continuam a investir) em ciência fundamental. Dispõem de uma reserva de conhecimento que pode agora ser útil à promoção internacional desse conhecimento e das empresas que já o aplicam ou estão em condições de o aplicar. Ora, do que Portugal precisa é de um investimento maciço em investigação fundamental. A capacidade de resiliência está fortemente dependente da capacidade de investigação fundamental, da capacidade de lidar com o inesperado, de encontrar novas respostas, de aplicar conhecimento de base em novas situações, e de capacitar recursos humanos com essas competências.
Isto é precisamente uma das dimensões que distingue o valor acrescentado da investigação fundamental face à investigação aplicada. A investigação aplicada resolve questões específicas, dentro de um quadro de conhecimento já muito bem definido e experimentado. Coisa diferente é a capacidade de intervenção num quadro de incerteza pouco definido em novos problemas, em que o conhecimento resultante de investigação de base assume um papel importante (o caso do desenvolvimento das vacinas é disso um excelente exemplo). A experiência passada mostra que, quando se anuncia um objectivo, mesmo que ténue, de alinhar a investigação com a inovação ou os processos de transformação social, há uma enorme dificuldade em Portugal em não transformar esse potencial num alinhamento com práticas normativas definidas por interesses económicos, acabando a investigação por ser descurada.
É errado pôr a ciência ao serviço das empresas porque isso significará que o valor acrescentado dos investimentos da UE vai ser, com grande probabilidade, canalizado para projectos de inovação e para empresas sediadas nos países centrais da UE. Repetir-se-á a história da década de 1990 com a qual não teremos aprendido nada. Mas seria igualmente errado pôr as empresas ao serviço da investigação científica. Do que necessitamos é que ambos os sectores cresçam de modo a que as sinergias entre eles se conjuguem num nível mais elevado que permita mais coesão social e mais bem-estar para os portugueses. O emprego científico é fundamental, mas não nos iludamos: se não quisermos que o investimento redunde em rentabilidade de empresas multinacionais que procuram Portugal apenas pelos salários baixos, a curto e médio prazo esse emprego vai estar predominantemente nas instituições científicas e de educação superior.
Impõe-se um aumento qualitativo do pessoal nas universidades. Quando comecei a minha carreira universitária, um professor universitário não podia leccionar mais de nove horas por semana; hoje, o jovem investigador que conseguiu fugir à precariedade e entrou na universidade com alguma expectativa de estabilidade está literalmente esmagado pelas aulas e pela burocracia que se criou à volta delas, em resultado de outro erro histórico: a obediência rastejante ao chamado processo de Bolonha, um projecto que, entre algumas coisas boas, serviu basicamente para transformar a prazo a universidade numa empresa capitalista como qualquer outra.
Não se pense que a investigação científica se reduz às ciências ditas naturais. Pelo contrário, a complexidade das sociedades contemporâneas e os desafios que nos põe o período de pandemias intermitentes em que estamos a entrar exigem uma nova centralidade das ciências sociais e humanas e da cultura. Sempre que se instaura uma transição paradigmática, os níveis de incerteza só se podem controlar democraticamente com investimento nas ciências sociais e na cultura, entendida esta no seu sentido mais amplo. Como vivemos num contexto de tecnocratas de nível médio, tenho de justificar esta posição com o super-guru das utopias tecnológicas, Nicholas Negroponte. Perguntado pelo El País em 2019 sobre o que é mais importante estudar numa sociedade hipertecnológica, Negroponte respondeu secamente: “As ciências humanas são a coisa mais importante que se pode estudar.”
Portugal não precisa tanto de infra-estruturas como de superestruturas. Precisa de instituições científicas e universitárias livres de directores e de reitores de gestão corrente. Precisa de uma FCT dotada de pessoal não precário altamente profissionalizado que saiba gerir competentemente o sistema científico. Não precisa de tecnocratas, precisa de visionários democráticos. Tivemos sorte de ter um em tempos recentes – Mariano Gago. A custo lhe perdoo o único erro fatal que cometeu, o ter destruído a eleição democrática dos reitores, substituindo-a por Conselhos Gerais, que não melhoraram a qualidade dos reitores eleitos e que, longe de terminarem com os compadrios, os tornaram apenas mais opacos.