A pandemia mostrou que o progresso é reversível e que podemos retroceder para uma sociedade ainda menos desenvolvida e justa.
Enquadrado pela Comissão Europeia através do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, o Plano de Recuperação e Resiliência nacional (PRR) identifica respostas fundamentais para a crise pandémica. Será suficiente?
O primeiro aniversário da pandemia. E tanto que ela revelou, no último ano, sobre a economia portuguesa. Apesar de décadas de progresso, em múltiplas dimensões, ficou claro como a sua textura é frágil, com vulnerabilidades e desigualdades crescentes, muito intrincadas.
A principal debilidade da economia nacional tem sido recorrentemente apontada – já o era antes da atual crise eclodir. A especialização produtiva no país, que assenta em setores de baixa intensidade tecnológica e baixo valor acrescentado, limita a sua resiliência.
Este facto não é independente da persistente baixa qualificação dos portugueses e de uma recorrente desvalorização do conhecimento, dos saberes e das técnicas na vida quotidiana.
Outro aspeto que se soma a este é, fruto de uma tendência global, a destruição progressiva do trabalho decente, substituído por formas atípicas de emprego, que os portugueses foram originais a abraçar.
Portugal vive hoje um mercado laboral altamente dual, onde convive a grande rigidez de contratos efetivos, com a quase total flexibilidade de recibos-verdes e outros tipos de trabalhadores precários.
A explosão do turismo no pós-troika foi um elemento importante da recuperação da economia nacional. No entanto, a “algarvização” do país, neste aspeto, não trouxe nada de positivo a médio prazo. Como sabemos, o turismo é demasiado sazonal, caracterizado por formas atípicas de emprego, com centros de decisão externos ao país, altamente suscetível a variações fora do controlo do destino e que afetam a sua procura.
Soma-se ainda um outro fenómeno, de concentração da economia, principalmente na Área Metropolitana de Lisboa, deixando aos outros lugares um papel subordinado.
No caso do Algarve, essa função é quase lúdica, limitada às férias e ao turismo. São as populações descontentes nos lugares esquecidos pelo investimento que atualmente, por todo o mundo, votam em protesto contra os partidos tradicionais dos arcos governativos nas democracias, fazendo ressurgir o medo de regimes totalitários.
Uma outra fraqueza é a capacidade de resposta do Estado nacional. Dominado por anos de clientelismos, de endividamento, de esvaziamento de funções e capacidades foi, apesar disso, o ator central na resposta ao problema de saúde pública, e na mitigação da crise económica.
É neste contexto que surge o muito desejado Plano de Recuperação e Resiliência (que está em consulta pública até 1 de Março e pode ser lido aqui). Beneficiando de um envelope financeiro total de mais de 16 mil milhões de euros, é um plano tão necessário quanto urgente para Portugal.
O PRR tem muitos méritos, sendo o principal o facto de apontar na direção estratégica certa, a ambição de querer aumentar a resiliência económica, social e territorial, favorecer a transição climática e digital, preparando o país para desafios futuros. No entanto, tal como tem sido estruturado padece de – pelo menos – três falhas graves.
A primeira é a dependência das transferências de Bruxelas. Portugal assume-se como um país sem rumo próprio, quando todas as suas decisões prioritárias de investimento estão subalternizadas por desígnios dos fundos estruturais e de investimento e outros recursos provenientes da União Europeia.
Em segundo lugar, o PRR peca pelo excesso de fanfarronice governativa, distorcendo a visão do que os cidadãos podem de facto esperar deste plano.
A chamada “bazuca” é limitada e só terá o impacto necessário se complementada com outros financiamentos, em particular do Quadro Plurianual 2021-2027.
A ligação com outros instrumentos de planeamento estratégico, como as estratégias especialização inteligente ou as agendas temáticas de investigação e inovação, para referir dois exemplos, ainda tem muito por onde melhorar.
Finalmente, o PRR parece assumir-se, por agora, como um cardápio de investimentos (importantes mas) avulsos. O formato de participação escolhido a isso estimula, dificultando a adequada auscultação dos atores no terreno e reduzindo a coerência interna do próprio plano e as possíveis sinergias entre os investimentos estratégicos a realizar.
A pandemia mostrou que o progresso é reversível e que podemos – afinal não é assim tão implausível – retroceder para uma sociedade ainda menos desenvolvida e justa. Não o deixemos. Preparemos um bom plano e uma implementação ainda melhor.