Num mundo marcado pelo aparato e pela “sociedade do espetáculo”, onde os meios audiovisuais jogam um papel decisivo, pode parecer estranho que as mudanças profundas que estão em marcha ocorram debaixo dos nossos pés sob um manto de silêncio e opacidade. Fica difícil de saber se a opção do eleitor se define sobretudo a partir do lado “espetacular” e visível, onde a imagem e sentido estético são determinantes, ou se é a partir dos bastidores, das redes e contactos pessoais, onde é o mensageiro, o passa-palavra, que estabelece a credibilidade da mensagem. Paralelamente, nos tempos que correm, expande-se e ganha força uma lógica conspirativa, que assume o seu lado de secretismo para catalisar os índices de adesão, como revelam os movimentos negacionistas e as teorias da conspiração em curso (note-se que até a informação sobre a consumada invasão do Capitólio já circulava há semanas nesses meios). Ora, este pano de fundo não pode deixar de estar presente se pretendemos questionar as implicações políticas que as eleições do próximo dia 24 podem anunciar, cuja relevância irá certamente muito além de se saber quem é o vencedor.
Não é de agora o processo de esbatimento ou de eclipse da racionalidade no debate político, em beneficio da retórica radical e do populismo, tal como não é nova a profunda reconfiguração da ação política, sob influência dos meios televisivos e das redes sociais. Olhando os principais figurantes da nossa vida política, conhece-se a influência das televisões, quer no curto prazo quer no lastro temporal mais vasto entre diferentes ciclos eleitorais. Há muito que o lado personalista ganhou espaço na vida política à medida que as ideologias se esbateram. Isso permite-nos equacionar na atual campanha presidencial, por um lado, as diferentes candidaturas e suas ligações ao sistema político-partidário e, por outro, a diversidade de segmentos do eleitorado em função da influência ou distanciamento face às diferentes correntes político-ideológicas.
Vale a pena, portanto, considerar as hipotéticas oscilações na redefinição do sentido de voto de diversas camadas do eleitorado português nesta disputa eleitoral. Desde logo, o caso de dois dos candidatos mediaticamente mais apelativos (Marcelo e Ventura), que são, cada um a seu modo, produto direto de construções de imagem via TV (também Ana Gomes e até o atual PM). É claro que a eficácia política da exposição mediática depende sempre das características de cada personagem, das suas competências e conhecimento, sem dúvida, mas também – e nos tempos que correm cada vez mais – das suas qualidades performativas e dotes comunicacionais. O processo de formatação do gosto do público é apenas o aspeto mais óbvio da lógica de marketing na disputa de audiências (e, mesmo aí, há que distinguir os grupos de média com escrúpulos e sentido ético daqueles que não sabem o que isso é).
O crescente abstencionismo eleitoral exprime as tendências em curso – talvez mais uma consequência do que uma causa – de fragilização do sistema democrático, e é possível que aumente neste ato eleitoral. A passagem da abstenção para um voto estimulado pelo ódio não será inédita, como se tem visto por essa Europa fora. Creio que é sob esses terrenos movediços que se reconfiguram, hoje, os fluxos mais indefinidos do eleitorado, entre os setores mais vulneráveis onde grassa a insegurança e o medo. Para entender a recomposição em curso no xadrez político-partidário e antever o que as eleições presidenciais podem trazer de novo, importa ter em conta essa variável. Até há pouco tempo, Portugal era apontado na Europa como um "case study”, na contracorrente da tendência internacional, devido à ausência no nosso país de grupos ou movimentos de natureza neofascista. Mas o cenário alterou-se profundamente no último ano, sobretudo desde que um partido de extrema-direita foi legalizado e entrou no Parlamento.
Como poderemos, então, antever as readaptações em curso e de que modo elas interferem nas tendências de voto nas eleições presidenciais? O eleitorado é como um puzzle onde há peças mais estáveis e outras mais instáveis, mas os rearranjos sistémicos tendem a irromper a partir das margens do sistema, ou seja, com o apoio dos que se sentem marginalizados. Os setores menos politizados regem-se acima de tudo por fatores emocionais, sempre mais sensíveis à componente performativa ou ao “carisma” de um líder radical do que à força das ideias. O chamado “voto de protesto” é expressão disso. É a imagem “representada”, na perceção de cada um, que melhor encarna e “dá voz” ao ressentimento e frustrações desse eleitor. Mas tudo isso se conjuga ao mesmo tempo com a busca de proteção e segurança. Daí deriva a sensação de “familiaridade” ou até de “intimidade”, associada à influência dos média, elemento indutor de adesão a esta ou àquela figura mais conhecida, mais visível, e, portanto, sentida como mais próxima. De um modo geral, estas camadas do eleitorado são particularmente propensas a uma identificação pessoal, mais ainda quando tal ou tal personagem se apresenta “acima” dos partidos (Cavaco Silva também explorou isso).
As eleições presidenciais em Portugal decorrem sob o efeito dessas circunstâncias, e é quase certo que irão penalizar os/as candidatos/as organicamente mais vinculados/as a estratégias partidárias. Na atual campanha, a relação entre candidatos e partidos obedece a uma lógica semelhante, mas com particularidades próprias. Marcelo Rebelo de Sousa, sendo embora um produto partidário bem conotado, transcendeu essa conotação devido à sua antiga popularidade televisiva e hoje, após um primeiro mandato em que consolidou a sua imagem de “Presidente dos afetos”, conseguiu sobrepor-se ao seu partido e até estender a sua influência a setores significativos do PS, ao ponto de obter o apoio tácito da sua direção. Vivemos sob a hegemonia do “populismo democrático” do atual Presidente, ajudado pelo Governo de Costa. De resto, logo no primeiro debate, entre João Ferreira e André Ventura, foi notório o paradoxo que essa relação ambígua encerra (a ligação aos partidos) e a forma perversa como o elemento mediático interfere com isso. Enquanto o primeiro emana diretamente de uma força partidária bem identificada (o PCP), o segundo, embora sendo o principal criador e a própria personificação do seu partido (o Chega), é visto por uma parte significativa do eleitorado (veremos qual o seu peso) fora da lógica partidária e (alegadamente) acima dela. Salta à vista que Ventura beneficia do efeito novidade e da sua retórica antissistema (o “justiceiro indignado”), cuja gritaria consegue, por incrível que pareça, esconder o óbvio: que se assume abertamente contra a Constituição, que é a primeira instância a que um Presidente presta juramento e a que deve obedecer.
Já Marisa Matias e Ana Gomes serão porventura penalizadas devido ao “fogo cruzado” que deriva da ligação aos respetivos partidos, por razões opostas. A primeira porque simplesmente representa a estratégia partidária do BE, e cuja ambição política nesta campanha é, como já se percebeu, muito limitada; e a segunda porque, por um lado, sofre com a ligação que efetivamente tem como dirigente do PS, e, por outro, por não poder beneficiar da mobilização ativa das suas estruturas. Embora possa beneficiar dessa autonomia, o mediatismo de Ana Gomes e mesmo o alegado tom populista das suas denúncias não a afastam do sistema partidário e do campo da esquerda. A experiência política e efetiva independência da candidata socialista dão-lhe a vantagem de uma imagem de consistência, seriedade e de combatividade em torno de bandeiras importantes, mas a possibilidade de um resultado sólido na segunda posição é ainda incerto. E disso pode depender muito mais do que o desfecho imediato destas eleições.