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04-01-2021        Público [P2]

Os tempos estranhos que vivemos atemorizam. Na viragem do milénio era ainda o tempo de contestação à globalização e os movimentos sociais, maioritariamente inseridos no campo da esquerda, começavam a usar o “ciberativismo” das redes sociais e a ocupar praças e ruas na denúncia das injustiças e desigualdades globais. A componente comunicacional da era digital promoveu uma profunda transformação nos nossos hábitos e na esfera pública, mas a tendência das últimas décadas apenas prolongou e intensificou formas de ação já sinalizadas desde os anos 60-70 do século passado. Já nessa altura o espetáculo dos mass media representava uma “encenação exacerbada da comunicação e uma desestruturação do real (…) [que] dissolve o sentido e dissolve o social numa espécie de nebulosa votada à entropia total” (Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação, 1981). Porém, os diversos meios comunicacionais de ontem e de hoje (rádio, TV, telemóveis, redes sociais, etc.) não anularam nem anulam as dinâmicas participativas da sociedade civil, antes lhes imprimem novos formatos, riscos e oportunidades.

Ao logo de 2020, durante a crise sanitária, sucederam-se os movimentos sociais e contramovimentos, com maior ou menor significado político, mas muito mais matizados e instáveis do que antigamente. Alguns evidenciam sinais perigosos para a democracia, como sabemos. Enquanto a pandemia se foi expandindo pelo mundo, os principais figurantes do xadrez político global foram revelando as suas mais diversas perversidades (Donald Trump, Jair Bolsonaro, Matteo Salvini, Marine Le Pen, Viktor Órban, etc.). A sua afirmação conjugou-se, em boa parte dos casos, com as novas plataformas digitais, por um lado, e a emergência de movimentações de massa de novo tipo, por outro. Temos vivido sob um confinamento à mistura com um medo difuso que faz crescer todo um contingente de camadas sociais silenciosas, de gente vulnerável, onde cresce o ressentimento, as aspirações recalcadas, com uma parte da sociedade a oferecer-se como o principal fertilizante para o crescimento do radicalismo de extrema-direita.

Com a institucionalização da democracia conquistámos mais direitos sociais, mas ao mesmo tempo aumentou o consumismo, a alienação e até a conflitualidade. Desde o início do século XX os movimentos sociais imprimiram uma dinâmica social que favoreceu o acesso popular a atividades típicas de “classe média” nos ambientes de consumo e lazer, mas também na esfera pública, aumentando a influência política das “massas”. Ortega Y Gasset referiu-se à “hiperdemocracia” como resultado dessa tendência de massificação. A atitude típica que mais favoreceu a ação de «massa», postulou este filósofo, “é todo aquele [indivíduo] que não se valoriza a si próprio mas se sente ‘como toda a gente’”. Em finais da década de 1920, quando os movimentos fascistas cresciam na Europa, a nova ação coletiva parecia ilustrar “o império político das massas” mas foi então que se abriu caminho à derrota da democracia liberal com base em mobilizações de massas que “se sentiam no direito de impor e dar força de lei aos seus tópicos de café” (A Rebelião das Massas, p. 225).

Um século depois, não é bem uma repetição da história que estamos a viver. Ao longo de cem anos, as transformações foram profundas em todos os domínios, e os progressos sociais inegáveis. Pode dizer-se que as atuais tendências e movimentos revelam contornos bem distintos, mas os novos ingredientes misturam-se com condimentos em muitos aspetos idênticos aos dos anos 1920 e 1930. Alterou-se a nossa relação com o tempo e o espaço. No último quartel do século XX, com o mundo cada vez mais rendido às novas TIC, novas dinâmicas sociais começaram a promover a compressão do espaço-tempo e os riscos sociais intensificaram-se. Cresceu a lógica do imediatismo e a vida quotidiana sofreu uma espécie de febre do presente, largamente induzida pelo neoliberalismo consumista, onde a indignação e as lutas sociais perderam o velho sentido de utopia em favor de uma demanda generalizada por proteção.

Essa tendência ganha hoje ainda mais força. Nas últimas duas décadas, a reorganização produtiva, rendida à voracidade do “turbo-capitalismo” financista, fez disparar os índices de desemprego, subemprego e precariedade, operando uma viragem drástica do anterior padrão hedonista e consumista para a busca ansiosa de libertação face à insegurança e incerteza. Perante a dificuldade crescente de pensar o futuro e o “projeto de vida”, as velhas lutas emancipatórias deram lugar a ações defensivas onde as “reivindicações” são centradas no imediato e na minimização dos danos (vide a situação do movimento sindical). O desgaste causado pela crise financeira e social de há dez anos quebrou a capacidade de luta, ampliando o divórcio face à vida política e a descrença nas instituições.

É verdade que também assistimos a alguns movimentos progressistas como as Lutas Climáticas, o #MeToo ou mais recentemente o Black lives matterque tiveram repercussões importantes na defesa do ambiente, na denuncia do assédio sexual ou do racismo e violência policial. Persistem, pois, as contra-tendências. Mas hoje parece crescer nos subterrâneos da política uma espécie de “rebelião silenciosa”, com forte ressonância nas redes sociais, e que promete ganhar força, pondo em risco a democracia. Nos últimos anos, e com maior expressão no quadro da pandemia da covid-19, sucederam-se os protestos onde são visíveis os traços reacionários e fascizantes. O desespero e a “exaustão da política” empurram milhões de cidadãos, desalentados e cansados do ruído mediático, ao encontro de respostas “simples” nas redes sociais, oferecendo os seus esquemas mentais — por desespero e ingenuidade, mas também inveja e desejo de vingança — como autênticos mupis de propaganda negacionista. Ao mesmo tempo que somos afogados com gritaria populista, muita gente adere sem filtro aos soundbites mais maniqueístas, que preenchem as suas pulsões primárias fruto da vulnerabilidade, insegurança e desespero. É sobretudo entre essas camadas, na sua maioria segmentos subalternos, que florescem e frutificam as novas teorias da conspiração.

Nos EUA e no Brasil mas também na Europa (França, Itália, Espanha, Hungria, etc.) ganharam expressão protestos de massas em sintonia com líderes de extrema-direita. No caso do Brasil, fações organizadas à sombra de Bolsonaro fizeram circular milhões de mensagens e notícias falsas ou distorcidas no WhatsApp, que terão sido determinantes para eleger o presidente. Na fase final do mandato de Donald Trump irradiaram a partir desse país movimentos de índole semelhante que tiveram e têm alcance noutros continentes, inclusive na Europa. As manifestações e o discurso dos negacionistas multiplicaram-se através de grupos e sites de fake news, montados para instigar o medo e o ódio. Exemplos disso são o QAnon, que se espalhou a partir dos bastidores da administração Trump, e o documentário manipulado que circulou no YouTube, (chamado Plandemic [1]), um filme de 26 minutos, criado por um obscuro realizador (Mikki Willis), entretanto apagado. Negação da ciência, negação da covid-19 e agora negação das vacinas. Apesar de muitas destas correntes de propaganda estarem a ser denunciadas por algumas plataformas e imprensa séria (por exemplo, o New York Times) e nalguns casos os tweets posts comprovadamente falsos serem barrados por diversas aplicações (como o Twitter e Facebook), o certo é que esta lógica de difusão de falsidades anti-sistema se revela muito preocupante em sociedades com elevados índices de iliteracia social, onde cresce a indignação desinformada de uma «retaguarda social», marcada pela ignorância e pelo ressentimento das massas.

[1] Este projeto foi investigado e denunciado pelo jornal New York Times, 20.05.2020


 
 
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Elísio Estanque