Os movimentos feministas da Argentina conseguiram! Depois de décadas de acção colectiva, a chamada “maré verde” (Marea Verde), que inclui pibas (adolescentes), históricas (as pioneiras que hoje têm mais de 70 anos), movimentos LGBTIQ+, indígenas e tantos outros, conseguiu fazer que o aborto seja legal, seguro e gratuito no país. Com isso, a Argentina torna-se o quinto país da América Latina a garantir o acesso à interrupção voluntária da gravidez, juntamente com Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Uruguai.
Como parte do meu doutoramento em Direitos Humanos e com o objectivo de aprender com e sobre a luta dos movimentos feministas para legalizar o aborto, em Fevereiro de 2020 mudei-me a Buenos Aires para realizar o meu trabalho de campo. Ao chegar, de imediato pude sentir a energia dessa Marea Verde, dessa onda de movimentos feministas que representa a luta pelos direitos sexuais, reprodutivos e pela autonomia dos corpos e que tem no verde a cor do aborto.
A Marea Verde estava em todos os lugares da cidade. Encontros, comemorações e protestos pela legalização do aborto ocorriam quase que diariamente. Eram eventos lindos e cheios de potência feminista. Milhares de pessoas marchavam nas ruas cantando em uma só voz: que sea ley! Lembro a minha emoção de me sentir no epicentro de tudo isso. Ao meu entorno, pessoas das mais diversas idades, mães com as suas filhas pequenas, avós com suas netas adultas, mulheres indígenas, mulheres villeras, pessoas trans e travestis, todas com um objectivo comum: a defesa da autonomia dos seus corpos.
O recém-empossado Presidente, Alberto Fernández, tinha prometido que o projecto de lei seria discutido ainda no primeiro semestre de 2020 e tudo indicava que isso aconteceria. Mas de repente o mundo parou. A pandemia de covid-19 chegou ao país e foi decretado um lockdown. Tudo fechou, não podíamos mais reunir-nos fisicamente nem sair às ruas. A Argentina viveu a quarentena mais longa do mundo. Em Buenos Aires, foram 234 dias de isolamento. E não poder estar nas ruas foi como se tivessem tirado o espaço dos movimentos feministas. Lembro uma conversa com Ruth Zurbriggen, uma das fundadoras de La Revuelta, que me disse “os movimentos feministas na Argentina têm um lugar, e esse é nas ruas. Um lugar de encontros, de festas, de reclamações, de exigências”.
Mas mesmo “sem as ruas”, a Marea Verde não parou, reinventou-se e encontrou formas criativas de avançar na luta: realizaram oficinas, aulas, debates, vigílias, protestos e celebrações virtuais. Porém, nem tudo foi virtual, foram feitas intervenções feministas na cidade. Lembro-me de acordar no dia 28 de Maio e ver (pela janela) as ruas tomadas de verde. Era o 15.º aniversário da Campaña Nacional por el Derecho al aborto legal, seguro y gratuito e como não era possível sair às ruas para comemorar, a Marea Verde ocupou a cidade com cartazes verdes exigindo aborto legal. Também foram feitos cacerolazos e banderazos onde podíamos participar desde nossas casas e, já no final do isolamento obrigatório, mas respeitando o distanciamento, foram organizadas caravanas de carros, bicicletas, motos pela aprovação da lei.
A Marea Verde continuava pulsando e assim manteve o debate na agenda política e social e, sustentando-se numa estratégia de organização horizontal, colectiva e diversa, conseguiu descriminalizar socialmente o aborto. Aborto agora era um assunto discutido nas casas, nos média, nas escolas e universidades. Muitas das integrantes da Campaña disseram-me que depois de elas se juntarem, as suas mães, tias, amigas contaram as suas experiências, até então secretas, de abortos. O aborto saiu do armário.
Foram décadas de luta, de muita resiliência e perseverança, muitos obstáculos a serem superados. Em 2020, a Marea Verde reinventou-se e mostrou uma enorme capacidade de mobilização e articulação e, no dia 30 de Dezembro, conquistou o aborto legal para todas as pessoas com capacidade de gestar. Essa vitória é monumental e central para a luta feminista e para a luta pela transformação social, não apenas para o país, mas para a região. Os movimentos feministas da Argentina mostram-nos a força da acção e construção colectiva e fazem-nos acreditar que outro mundo é possível.