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02-01-2021        Jornal de Notícias

A receitas impostas pela troica e pelo governo PSD/CDS, com o pretenso objetivo de resolver a anterior crise, consideraram o povo português infetado pelo vírus do aburguesamento: vivia preguiçosamente à custa do alheio. Assim, tinha de remir o pecado penitenciando-se com elevado desemprego, encerramento de milhares de pequenas empresas, redução de salários e proteção social, perda de direitos laborais, piores serviços públicos em áreas primordiais e pobreza. Os jovens foram convidados a “sair da sua zona de conforto” e a emigrar. A propaganda levou muitos portugueses a submeterem-se a essas penitências sem grande reação.

O tempo mostrou a injustiça e ineficácia dessas receitas. As causas dos graves problemas do país não tinham afinal resultado de gastos excessivos do povo, mas sim de negócios ruinosos e roubos feitos por banqueiros e grandes senhores “investidores” (também gestores e alguns políticos ao seu serviço) que submeteram a economia à finança e vulnerabilizaram o trabalho, de privatizações e negociatas público/privadas dolosas para o Estado, de uma política de desprezo pela afirmação de interesses nacionais nas cadeias de valor em que se situam as nossas atividades económicas. Resultaram ainda, da perda de instrumentos de política vitais para o desenvolvimento.

O país ficou mais pobre e desigual, com um pesado lastro na área do trabalho e envelheceu aceleradamente. As políticas adotadas após 2015 atenuaram sacrifícios e produziram pequenas reparações, mas não mudaram estruturalmente o rumo. A banca revelou-se como o grande sorvedouro da riqueza nacional que, sem controlo público, continua por estancar. A linguagem “especializada” utilizada na informação aos portugueses sobre este buraco (e outros como a TAP) é manipulada e hermética, para que as pessoas não entendam e não se revoltem. Esta é a base em que o país chegou, em 2020, à crise provocada pelo coronavírus.

E agora o que nos é proposto? As receitas vão adotando bases claras: está em marcha a tentativa de um “retorno à normalidade” que dê por adquirido, quer as desigualdades e injustiças que esta crise aprofundou e tende a agravar, quer a inevitabilidade de os portugueses aceitarem o modelo e práticas que nos conduziram aqui. E, quando alguns dos grandes atores que vão gerir os dinheiros da sobrestimada “bazuca europeia” ou os fundos do próximo quadro comunitário se pronunciam, fazem-no mais na perspetiva dos negócios do que da modernização da economia – bastante bloqueada no contexto europeu existente.

Quais os argumentos utilizados para inculcar na cabeça dos portugueses a justeza deste rumo? A invocação das incertezas, a ideia de que a pandemia, ao “atingir todos”, é a causa da redução de salários e do desemprego que se perspetiva (muito dele oportunista), para servir os negócios que aí vêm; é  a repetição de que as emergências e situações de exceção justificam eliminação de direitos de cidadania, onde se incluem os direitos do trabalho.

A crise em que estamos mergulhados estrutura-se, pois, sobre um adquirido desastroso nos planos económico, social, cultural e político e sofre os impactos da conjugação de três grandes fatores de escala global: forte influência de mudanças geopolíticas e geoestratégicas, com efeitos (positivos e negativos) contraditórios, que estamos longe de perceber em toda a dimensão; aceleração de mudanças tecnológicas sem o necessário controlo político e social; esgotamentos ambientais e ecológicos que necessitam de urgentes respostas.

Neste quadro, precisamos de políticas que estanquem os sorvedouros, de mais economia e menos negócios de oportunidade, de políticas que priorizem o objetivo de servir os seres humanos, de construir mais autonomia abrindo relações para além do beco em que países como Portugal são colocados no quadro da União Europeia.


 
 
pessoas
Manuel Carvalho da Silva



 
temas
trabalho    economia    UE