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26-12-2020        Público

Num momento de crise pandémica e socioeconómica sem precedentes, num momento em que o mundo e a Europa se veem obrigados a questionar os modelos económicos dominantes, num momento em que as democracias estão ameaçadas pelo populismo e pela extrema-direita, num momento em que a União Europeia é obrigada a repensar-se, quer quanto à sua coesão e recuperação económica, quer quanto ao seu futuro como player do xadrez global, enfim perante os desafios tão urgentes que temos pela frente, a intelligentsia deste país e os principais líderes atuam como se as eleições presidenciais de 2021 fossem um assunto menor. Em parte, devido à pandemia e às medidas de confinamento, em parte, devido aos índices de popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), é como se o assunto estivesse resolvido à partida.

Uma tal atitude é expressão de uma democracia doente. O PSD e o CDS, com as suas frágeis lideranças, dão-se por satisfeitos com o desfecho anunciado. Mas, se isso se compreende no caso do PSD, cujo presidente-candidato foi seu líder, no caso do CDS a atitude é menos óbvia, pois as suas bases eleitorais estão a fugir-lhe debaixo dos pés, em vias de se ver reduzido à dimensão de partido do táxi. O atual líder centrista estrebucha para imitar os tiques radicais do chefe do Chega, enquanto um dirigente como Lobo Xavier afirma que Marcelo é o melhor antídoto à extrema-direita. O futuro o dirá. Mas a julgar pelo contentamento do líder da extrema-direita parece óbvia a vantagem que irá tentar retirar desse aparente consenso do “centrão” para descredibilizar o regime.

No campo da esquerda também não há novidades. O BE e o PCP continuam a tentar aguentar os seus eleitorados, sabendo embora que muito dificilmente Marisa Matias evitará sair deste combate com um resultado humilhante; e João Ferreira dificilmente conseguirá sinalizar que é capaz de aguentar “a força do PC” como oposição e projetar de si uma imagem credível como potencial futuro líder partidário (porque no fundo é isso que está em jogo). Mas é sobretudo a postura ambígua do PS que preocupa. Se o argumentário institucional é compreensível, se é legítima a opção de dar liberdade de voto aos seus militantes, não é o tempo de nos contentarmos com uma democracia cerimonial. Compreende-se a posição de António Costa — mesmo considerando um erro ter assumido o papel de promotor do “marcelismo de segunda temporada”, como fez na visita à Autoeuropa — e o seu desejo de dar continuidade ao bom relacionamento institucional que manteve com o Presidente ao longo deste mandato. Percebe-se também que com isso tente atrair Marcelo para o campo do centro-esquerda, visando tirar espaço ao PSD de Rui Rio. Podemos ainda dar de barato que MRS vai vencer confortavelmente estas eleições, porque foi um bom Presidente no primeiro mandato e por isso merece a preferência dos portugueses.

O que me parece difícil de compreender é o comportamento do aparelho do PS. É triste ver dirigentes socialistas considerar a eleição presidencial como se de um mero acto burocrático se tratasse, e outros a terem de fazer contorcionismo para esconder as suas opções de voto. É preocupante que a “liberdade de voto” não se traduza na liberdade de opinião, pois a intervenção livre dos militantes só dignificaria a política e revigoraria a democracia interna. Será que o PS, que no plano nacional e europeu se filia numa corrente ideológica adversária da direita liberal onde se insere o PSD português (e o atual Presidente), tem vergonha de assumir a sua identidade de partido da esquerda “social-democrata”? Com tantas nuvens negras a pairar sobre o regime democrático, não devemos dar prioridade à desmontagem do discurso salvífico e populista? Se, como é previsível, se verificar uma abstenção massiva nas eleições presidenciais e um crescimento exponencial da extrema-direita, a quem devemos pedir contas?

Esta aparente “convergência” centrista só favorece a extrema-direita quando o que o país requer é um debate público clarificador quanto ao posicionamento do futuro Presidente face ao futuro pós-pandemia. Não duvido que se houvesse uma efetiva mobilização dos socialistas nesta disputa eleitoral, as atenções não estariam, como estão, focadas sobretudo em André Ventura. O problema é que a cultura dominante no seio dos aparelhos partidários obedece mais ao calculismo dos alinhamentos cegos com o chefe, a uma lógica de defesa dos cargos e ambições pessoais, do que a uma atitude frontal na defesa das diferentes leituras políticas da realidade. Se o fim do debate ideológico é já um clássico, na atual conjuntura são sobretudo as bandeiras da esquerda que estão em recuo. Algumas estão silenciosas outras permanecem enquistadas e anacrónicas, quando a sociedade apela à sua urgente reinvenção. As vozes de esquerda quase desaparecem da cena mediática, não obstante a retórica da direita retrógrada contra o “poder socialista” e a velha ladainha do “perigo comunista”.

No atual quadro de crise de valores e fragilidade das instituições, o tacticismo disfarçado de “pragmatismo” só agrava a situação. O fundo do problema, que a maioria dos líderes não quer perceber, reside no sentimento coletivo de impotência e despeito por parte de uma larga parcela da sociedade, as principais vítimas da crise (de todas as crises) que se sente traída, deixada para trás, e permanece politicamente iletrada. São esses os segmentos que mais aderem ao discurso contra “os políticos”, contra o “regime”, enquanto o aparelhismo instalado continua a oferecer argumentos aos detratores do sistema.

É claro que temos de falar do Ventura e do Chega. Porque é em larga medida o posicionamento quanto a essa ameaça que define o perfil e a postura dos candidatos presidenciais e dos partidos políticos. E o facto é que o nosso Presidente aceitou sem pestanejar o acordo dos Açores. São conhecidas as manobras, trapalhadas e alterações de última hora desse partido e do seu líder, aquando da legalização junto do Tribunal Constitucional. É por tudo isso, mais do que esta ou aquela linha do programa, que devemos classificá-lo como o motor de um movimento de cariz fascista. Os argumentos constitucionais são importantes, mas a denúncia política não é menos. Porque no caso do Chega, o que conta é a dinâmica da corrente que já está em marcha e vai crescer; é o conjunto de posições, é a retórica radical, é o estilo sempre ameaçador do líder, é a proclamação aberta contra a Constituição e contra o regime, é o racismo e a xenofobia ostensivos. A Alemanha tem mostrado maior consciência desses perigos, com os partidos democráticos a imporem um cordão sanitário à AfD neonazi. Quando esse princípio foi quebrado na Turíngia deu-se um sobressalto nacional que reverteu de imediato a situação e levou à demissão da Líder da CDU (veja-se o artigo que publiquei neste jornal em 11.02.2020). É certo que a Alemanha transporta o trauma da guerra e do nazismo. Mas nós vivemos 48 anos de ditadura, e apesar disso muitos portugueses continuam, hoje, nostálgicos de Salazar. Uns por ignorância outros por ressentimento e convicção.

Os comentadores de serviço e muitos quadros e dirigentes partidários (de direita e de esquerda) reconhecem, em teoria, as sucessivas contradições, o oportunismo, a falta de escrúpulos do candidato André Ventura. No entanto, em muitos debates prevalecem os argumentos formais e institucionais, que, embora formalmente corretos, são politicamente frágeis e perigosos, porque complacentes com o Chega. Tem sido mais frequente e mais virulenta a crítica a quem denuncia a extrema-direita do que a denúncia dos perigos que ela representa para a democracia. A função estratégica do Estado para o desenvolvimento do país, e a resposta face aos riscos e desafios que aí vêm, na Presidência da República o centro nevrálgico de defesa do Estado democrático. Defender a Constituição requer mais do que uma leitura formalista e protocolar. E esta campanha pode ser uma oportunidade perdida para abrir esse debate.


 
 
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Elísio Estanque



 
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