Aí, no seu S. Pedro de Rio Seco, sentiu porventura o clamor das vozes. Muitas e variadas em busca do que melhor traduza o raro privilégio da sua presença nas nossas vidas. Quase todas trazendo memórias pessoais mais ou menos íntimas, mais ou menos curiosas, de momentos que partilharam consigo, e só por isso os torna depositários de um tesouro demasiado precioso para ser ignorado! Bem sei que é o mais natural mas, por mim, sinto que esse céu de palavras para onde o querem levar se assemelha antes a um difuso nevoeiro que a mais simples das suas citações dissipa como o primeiro raio de sol da manhã.
Cito-o de cor: “Nós escrevemos como se fossemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós nunca escreveríamos nada de grandioso.” Como se... claro... como se... E não foi Pessoa, o seu alter ego, ou um seu secreto heterónimo, que lhe ensinou a verdade do fingimento? E que o escudou para enfrentar os “dragões de todas as evidências que enganam”? Então essa “evidência” da sua morte que tomou de assalto os círculos mediáticos, devidamente assessorados pelos habituais comentadores “especializados” (que nem por isso se apercebiam do escândalo ou do prodígio que noticiavam), só podia ser um engano... ou uma ficção... quem sabe?
Como podia morrer alguém que, durante tantos e tantos anos, habitou com tão intenso prazer, lucidez e generosidade, a nossa paisagem cultural e o núcleo mais íntimo dos nossos afectos? Alguém cuja voz de corifeu, aedo ou jogral fez de tal forma corpo com o nosso tempo vivido que, mais do que memória ou inscrição, foi dele desejo e pulsão de futuro? Alguém a quem amorosamente confiámos o diário de bordo desta nossa comum navegação entre imaginação e mundo? E que primeiro nos dava as boas e más notícias: das tempestades como dos dias de bonança, reais ou sonhados?
E não era só o assunto: da filosofia à política, da música, da pintura e da arte em geral à história, do cinema à literatura (sua paixão maior), dos momentos e protagonistas principais da nossa vida cultural, política ou social, aos aspectos mais fúteis ou efémeros da nossa pequena comédia mundana, segundo a sua máxima de que um ensaísta é o que pensa tudo o que deve ser pensado, e mesmo o que o não merece...
Era também o lugar de onde essa fala nos chegava: das mais humildes e obscuras instituições de cultura e de ensino deste país, às mais prestigiadas universidades nacionais e internacionais, do mais obscuro jornal de província, às mais conhecidas publicações literárias e culturais, das pequenas rádios locais aos principais canais de televisão... dos inúmeros congressos, colóquios, encontros, da imensidão de livros que apresentou aos prefácios que escreveu... onde a sua presença era sempre promessa de regresso ao fulgor das perguntas iniciais.
Sedução... é a palavra. Primeiro por si, como pessoa: esse misto de camponês e de príncipe... essa atenção aos outros e distracção de si mesmo... esse sorriso tão jovial de quem faz de cada encontro uma festa... essa alma de eterno viajante que chega como se sempre estivesse, e parte como se ficasse. Depois, pelo poder magnético dessa voz. Escrita ou falada, é a um tempo inquieta e serena, fluida e terrivelmente precisa, “torrencial, sem tonitruância” (M. Velho da Costa) e suave como um regato ameno... E, contudo, sempre capaz de suspender todas as evidências instituídas e nos levar a ver as coisas como se pela primeira vez as víssemos.
Consigo aprendi que o pensamento pode ser uma imensa alegria. Maior ainda quando partilhada e vivida em tempo real. Vê-lo e ouvi-lo, onde e sobre o que quer que fosse, era isso: a imensa alegria de o ver pensar. Com temor e delicadeza... tacteando o chão e olhando em volta... perscrutando sinais... ensaiando o voo... criando, experimentando, hesitando, aceitando ser escolhido em vez de escolher e por isso mesmo chegando sempre demasiado longe...
Por paradoxal que pareça, não é fácil ouvi-lo e muito menos lê-lo, professor! Sê-lo-á para quem o senhor é o brilho encantatório da sua escrita, ou o poder das suas cintilações de pensamento... tantas vezes transformadas em clichés e estereótipos sem vida.
Esses são os traços que o consagram e lhe conferem uma unanimidade coroada com o fulgor da canonização, sempre ameaçada pelos fantasmas do “comentarismo ruminante e estéril”, como o senhor sabe, melhor que ninguém. Mas, depois, há a vertigem estonteante dessa fala polifónica que tanto o faz voar na asa do tempo, como mergulhar fundo na imensidão da biblioteca viva que o senhor é.
E há esse estilo barroco, metafórico, cheio de referências implícitas ou explícitas, ironias, analogias, bifurcações, labirintos, onde os mais receosos acabam por sucumbir de cansaço e encantamento, como os antigos navegantes ao canto das sereias. E se recolhem numa veneração silenciosa, que é tantas vezes a outra face da “desleitura” que afecta tantas das suas propostas. Quase se resignou com essas leituras preguiçosas e apressadas, ou mesmo perversas, às quais reagia entre o irónico e o melancólico.
Talvez por isso Saramago tenha sido mais claro e veemente: “E veio Eduardo Lourenço e explicou-nos quem somos e porque o somos. Abriu-nos os olhos, mas a luz era demasiado forte para toupeira habituadas à escuridão. Por isso tornámos a fechá-los.”
Voltando à questão da eternidade, motivo primeiro desta minha carta. Quem melhor do que o senhor se aproximou dela, a ponto de a ter encenado (fingido) nesse estranho e inqualificável objecto que é o filme Labirinto da Saudade de Miguel Gonçalves Mendes? Protagonista, narrador, actor de si mesmo, o senhor passeia por aquele espaço fantasmático no seu passo miudinho, no seu sorriso terno e ausente, por vezes divertido, de quem não entra afinal naquela história, de quem, à boa maneira do seu mestre, se desdobra sempre num outro porque, como escreveu algures, “nós só existimos no espelho dos outros”.
Procurar-se entre os outros, entre nós, a sua “lusa tribo” (Lídia Jorge) é, afinal, a razão última da sua demanda no filme como na vida. Por isso só faria sentido que essa sua entrada na antecâmara da eternidade fosse testemunhada e acompanhada pelos amigos que, na hora crepuscular, o não deixaram sozinho face à esfinge e lhe mostraram a sua verdadeira face no espelho da nossa orfandade e gratidão.
Foi assim que o vi partir para férias... sem outra bagagem que não a companhia dos seus irmãos poetas, com destino à verdadeira eternidade que é a infância. Esse tempo sem tempo, esse “grande círculo do sempre”, cujo brilho de puro cristal nunca deixou que os desastres da vida embaciassem. O senhor sempre soube que nunca saiu daquele planalto árido e varrido de vento, como ele nunca saiu de si. Habitou as margens da sua imaginação como todas as realidades da vida não habitaram o centro. Por isso a ausência que hoje nos fere é o mais real e verdadeiro de todos os seus regressos. Na contraluz dos milhares de páginas que escreveu desenha-se a imagem de alguém que sempre procurou na escrita “esse gesto de redenção que nos ajuda a atravessar a noite mais opaca até à reinvenção da infância imortal de todos os homens”. Disse-o, dizendo-se, de Antero, aquele que melhor que ninguém mostrou que “o mar da ficção o único onde a salgada e perecível vida se volve em realidade”. Hoje só os poetas deviam falar!...
“Só, incessante, um som de flauta chora”... ( Camilo Pessanha)
Sua,
Maria Manuela Cruzeiro