Hesitei bastante se devia opinar sobre um tema tão extremado em termos públicos. Faço-o por razões de consciência e porque sinto que vamos alimentando uma confusão que perturba o bom nome do país e, por arrasto, nos coloca a todos os que trabalhamos com (ou na) área das migrações um anátema que nos obriga a justificar o que para nós não é justificável. Um cidadão ucraniano, que não necessitava de um visto de entrada, que queria entrar no país e foi barrado pelo SEF é o ato inicial, tantas vezes discricionário, que importa compreender para percebermos toda a sequência da cadeia de responsabilidade neste caso. Morrer, após tortura, num cárcere temporário, sem direito de acesso à justiça, sem direitos e sem assistência, é o resultado da ação direta dos seus carrascos e da ação indireta de muitos outros e, no limite, a negação do Portugal democrático que construímos nestes últimos 46 anos. É por isso que este caso é um ponto de viragem na nossa história coletiva. Ou temos a coragem de mudar ou teremos, sem nos darmos conta, já mudado pela inércia e por cobardia.
Importa, pois, começar por definir os pressupostos em que me movo antes de procurar trazer ideias para um debate que se tem tornado simplesmente populista e sem racionalidade.
1. O crime de que vários inspetores do SEF (e outros elementos presentes no aeroporto de Lisboa entre 10 e 12 de março de 2020) são acusados e que provocou a morte de Ihor Homeniuk é um crime de homicídio, mas também um crime contra a humanidade e contra os Direitos Humanos. Acresce que, ou por ação, ou por inércia, ou por ausência de denúncia e ausência de auxílio, todos os agentes do Estado presentes à data no local e que tenham contactado com Ihor Homeniuk ou tido conhecimento da sua detenção são moralmente co-responsáveis.
2. Este crime, venha-se ou não a provar a culpa individual de todos e de cada um dos inspetores envolvidos (por enquanto presumivelmente inocentes), é um crime que responsabiliza o Estado português, à guarda de quem estava Ihor Homeniuk. Aguardemos pela justiça criminal, mas saibamos fazer, desde já, uma mea culpa coletiva.
3. A hierarquia do SEF, designadamente a Direção Nacional, tardou a reagir aos acontecimentos de 10 a 12 de março e demitiu-se de uma atuação consequente nos últimos nove meses. O silêncio da Direção Nacional foi-se tornando ensurdecedor. A responsabilidade aqui é evidentemente vertical e a responsabilidade operacional última dentro do SEF é da Direção Nacional. Há, no entanto, responsabilidades operacionais que têm que ser, também elas, demandadas.
4. Ao hesitar na substituição da Direção Nacional do SEF ao longo de nove meses, o MAI tornou-se parte do problema. Na verdade, a nomeação de um dos diretores nacionais adjuntos muito próximo politicamente do MAI, em fevereiro de 2020, faz-nos pensar que seria impossível o MAI não ter informação interna, e detalhada, deste caso desde o seu início e, neste sentido, a inércia do MAI não tem explicação. Devemos pensar, com serenidade, nas consequências desta inércia.
5. Os procedimentos do SEF têm que ser vistos à luz da Lei e, como sempre, o não cumprimento da Lei deve ter consequências. A Lei, por seu turno, aplicada pelo poder judicial, emana do poder legislativo e importa verificar se este último dedicou a suficiente atenção à gestão das migrações em Portugal, designadamente se as condições e procedimentos de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território português se adequam à realidade atual, se as forças de segurança, que representam o Estado português nas “portas de entrada”, estão adequadamente preparadas e munidas de recursos suficientes e se, na defesa dos direitos dos cidadãos, existe um normativo legal que possibilite atuar em caso de discricionariedade ou de mau uso da Lei. Pensamos que as muitas recomendações por parte de entidades independentes como a Provedoria de Justiça ou a Amnistia Internacional, para referir apenas algumas, que se acumularam sem efeito prático, mostram, à saciedade, que a inércia pode matar.
6. O SEF é uma estrutura complexa, com um conjunto de áreas de atuação que, por vezes, extrapolam as responsabilidades do que deveria ser uma polícia de fronteiras (border guard). Algumas destas áreas podem, com benefícios coletivos, ser externalizadas (penso, entre outras, no Portal de Estatística do SEF; na produção de relatórios sobre estrangeiros, em tudo o que respeita aos nacionais da União Europeia, do E.E.E, de Andorra ou da Suíça; ao Estatuto de igualdade de direitos e deveres ou ao Programa de Apoio ao Retorno Voluntário). Há outras áreas, porém, que só podem fazer parte de uma polícia especializada (estou a pensar, nomeadamente, na peritagem documental e documentação de nacionais e estrangeiros; na investigação criminal especializada; no policiamento e controlo de fronteiras). Ou seja, podemos pensar numa outra missão para o SEF, mas não é sensato pensar num desaparecimento do SEF com uma diluição da sua missão noutras estruturas públicas. O que perderíamos a longo prazo seria demasiado quando comparado com o que se ganharia a curto prazo.
7. Uma das atribuições do Estado português é a vigilância das suas fronteiras (e o controlo de quem sai ou entra neste espaço comum) que são, por via da nossa integração europeia, as fronteiras externas da União Europeia. Os inspetores e agentes do SEF que trabalham nesta área de fronteira são, neste sentido, responsáveis pela aplicação do Direito nacional e do Direito europeu de estrangeiros e de migrações. Esta é uma área crítica de segurança que exige uma formação ultra-especializada que, felizmente, muitos inspetores e agentes do SEF detêm. Pensar que uma simples transferência de hierarquia, para uma força de segurança generalista, resolve o problema de (falta de) humanismo e de humanização dos serviços
8. A solução passa, necessariamente, por uma complexa alteração da formação destes agentes e inspetores e pela criação, por via de mais e melhor legislação, de mecanismos de controlo e vigilância dos procedimentos aplicados. Falta um regulador e um mecanismo independente de controlo da atuação das forças de segurança em geral (e do SEF em particular). Faltam mecanismos de acesso ao Estado de direito (que não são botões de pânico, mas sim a presença permanente de advogados de defesa). Faltam mecanismos que impeçam a existência de discricionariedade na atuação dos agentes e inspetores face aos estrangeiros que recebemos ou, quando esta acontece, faltam mecanismos que remedeiem esta atuação.
9. É demasiado fácil pensarmos que o desaparecimento do SEF leva consigo todos estes problemas. Também é demasiado simples pensar que mudar a diretora nacional ou o ministro é a bala de prata que tudo resolve. Infelizmente, a solução é bem mais complexa. Importaria pensar numa governação integrada da questão migratória com um redesenhar de todo o sistema numa visão bem mais humanista e integradora. É por isso que este caso poderia ser um ponto de viragem na nossa história coletiva. Aguardemos.