A relação da Cátedra “Eduardo Lourenço” da Universidade de Bolonha/ Camões IP com o seu titular, desde a sua inauguração em 2007, é extensa, riquíssima, cheia de memórias. Poderia ser reconstruída com vários fios. Talvez um dos mais marcantes se situe num outro hospital, em Lisboa, em 2013, quando o Professor nos recebeu pouco antes do falecimento da sua mulher, Annie, internada e próxima do fim. Foi assim, em circunstâncias alheias a qualquer academismo de gabinete, que encerramos, com mais uma conversa generosa, a preparação do volume de Eduardo Lourenço, Do colonialismo como nosso impensado que sairia pela Gradiva, em 2014. Com um sorriso irónico e um pouco maroto, chamaria este livro de o “meu primeiro póstumo”.
Muitas conversas, muitas lições, muita sabedoria, ministradas com uma humildade que podia parecer ingénua, nas circunstâncias mais singulares. Termos conversado, jantado e rido em Bolonha, termos podido aceder ao acervo de Eduardo Lourenço, zelado pela dedicação de João Nuno Alçada, antes na Torre do Tombo, depois na Biblioteca Nacional; termos passado sempre que possível, nas nossas passagens por Lisboa, na sua sala na Gulbenkian, no meio caótico de livros e jornais, todo o tempo possível em contacto com o saber modesto e infinito de Eduardo Lourenço, foram privilégios raros.
Hoje, quando a memória se torna comemoração, é impossível apagar todos os momentos, oficiais e informais, em que o Professor manifestava sempre um afecto intelectual surpreendente pelos nossos projectos, pela nossa actividade de investigadores um pouco excêntricos, inclusive geograficamente, como ele também se deve ter sentido noutras circunstâncias.
Pudemos apreciar a generosidade inesgotável de quem nunca recusa um convite, qualquer que seja a origem, qualquer que seja o contexto, só pelo prazer de um saber que é antes de tudo encontro, relação, procura de entendimento, do outro, do externo, do desconhecido. É esta abertura, este valor literalmente político que agora, no dia da dor, sentimos que nos doou, desde aquela aula na Alma Mater, em Bolonha quando recebeu o doutoramento honoris causa e proferiu uma aula magistral sobre Portugal e a Europa, onde se entendia bem um núcleo profundo do seu pensamento: é pela fragilidade que Portugal permite entender melhor a Europa, assim como as debilidades continentais europeias ajudam a compreender melhor as dobras densas da complexidade portuguesa.
Ao longo dos anos tem sido o legado deste pensamento, desarmante e desprovido de qualquer veleidade pública, que tentamos transmitir aos alunos de Bolonha. Aqueles que nos disseram hoje “parece que faleceu alguém de família”.
O património crítico é imenso: das questões do colonialismo português em África que precocemente viu, primeiro no Brasil, logo em 1958, e depois em França, que literalmente via a explodir-se na Argélia — na sua democracia, nos seus valores, na sua aura — Eduardo Lourenço conseguiu antever e pensar, muito antes de todos e fora de estruturas disciplinares, mas com acutilante lucidez, o grande e esfíngico dilema da Europa e de Portugal que estas guerras inconfessadas e, um pouco mais tarde, inconfessáveis, encerravam. Do continente captou sempre a diversidade como potência e limite, desde a leitura renovada dos clássicos e dos anticanónicos na literatura à redefinição da ideia de comunidade a partir da reflexão sobre a língua portuguesa: no âmago sempre uma curiosidade infindável pelo novo, pelo desconhecido, pelo impensado. E o prazer profundo em aproximar-se de algo de despossuído.
Se quisermos encontrar uma síntese de qualidades que são acima de tudo humanas, podemos dizer que o que caracteriza Eduardo Lourenço é uma qualidade do olhar. Um olhar tímido e decidido, que com uma coragem inesperada aborda temas de uma complexidade imensa. E mostra que o saber não é erudição ou força, mas capacidade suave de aprender e compreender, nas perguntas necessárias e na incerteza das respostas, o humano. Uma qualidade de olhar que se combina com uma qualidade de voz, que felizmente pela escrita se cristalizou. Essa é a herança que nos deixa para sempre. Os espaços em Eduardo Lourenço são questões: Portugal, Europa, África, Brasil, interrogam a consciência crítica, constroem um pensamento inexaurível e democrático que pelas palavras tenta decifrar o que ainda não é visível. As pessoas e os escritores são interpelações: Antero, Pessoa, Camões, Torga, Sophia, Augustina e tantos outros para além do grande enigma, Salazar. Neste questionamento sem fim está a herança mais preciosa que deixa à nossa Cátedra e a todos nós: o exercício de um saber aberto e sem entraves que coincide com o exercício pleno e maduro da cidadania, um espírito que procura sempre no mundo, como na arte e na literatura, a justiça e a justeza das coisas, a vida em democracia. Uma lição hoje mais do que necessária. Com a nossa gratidão infinita, requiescat in pace, Professor.