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25-11-2020        Público

A um jogador de futebol não se exigem reflexões sobre o universo ou o sentido da vida. Na sua formação não se privilegia a aprendizagem das letras ou dos números, valoriza-se a educação do corpo, o aperfeiçoamento de gestos técnicos e movimentos táticos, esperando-se competência nas suas ações futebolísticas. O demais não interessa, nem tão pouco é aconselhável num desporto de massas.

Por isso, a esmagadora maioria dos jogadores caracteriza-se pelo não comprometimento político e indiferença social, permanecendo alheados nesse mundo paralelo do futebol. Maradona foi um dos escassos jogadores que assumiu posições políticas e se envolveu em questões sociais, utilizando o futebol como lugar a partir do qual desafiou tudo e todos. Desafiou a ordem social dos bairros pobres, a política dos militares, a força das organizações, o poder das grandes potências, e a hegemonia do norte. Fê-lo à sua maneira, umas vezes com a magia das suas fintas e golos, outras com palavras rudes e indelicadas.

A vida de um futebolista é relativamente fácil de ser narrada. Por entre histórias de exaltação, tudo começa com uma bola e se resume aos clubes por onde passou, aos jogos que fez, e aos troféus que ganhou. Depois, quando deixa de jogar, morre. Pode mais tarde ressuscitar sob a forma de treinador, dirigente, comentador, empresário, ou simplesmente permanecer num limbo de progressivo esquecimento. Diego Armando Maradona não fugiu a esse destino. Nascido em 1960, em Villa Fiorito, nos subúrbios de Buenos Aires, filho de uma família modesta, deixaria de ser futebolista aos 37 anos quando declarou o fim da carreira.

Num tempo de volatilidade dos heróis, Maradona é um dos últimos da nossa contemporaneidade. É um herói dessa indústria massificada de consumo imediato e alienante em que se tornou o futebol, no entanto não é um personagem artificial. A importância de Maradona está na singularidade dos seus gestos e feitos desportivos, no sentido social que lhes conferiu, no significado que as suas vitórias tiveram no quotidiano de milhões de pessoas, em particular de argentinos e napolitanos, e que se expande ao sul global, estigmatizado e carente de vitórias.

Num mundo marcado por linhas abissais, em que a hegemonia de uns se traduz na subalternização de outros, o campo de jogo constitui-se como o último reduto no qual ambos os lados se confrontam em aparente igualdade de condições. Esse é um espaço em que o colonizado pode ganhar ao colonizador e em que o pobre pode ganhar ao rico, apesar das vitórias penderem normalmente para o lado destes últimos.

No dia 22 de junho de 1986, no Estádio Azteca, disputou-se um desses jogos quando Argentina e Inglaterra se encontraram nos quartos-de-final do Campeonato do Mundo do México. Tinham passado quatro anos depois de guerra das Malvinas que opusera os dois países. É certo que a responsabilidade da guerra era da ditadura militar, mas os mortos eram essencialmente argentinos, a humilhação era argentina, e a vanglória era britânica. Nesse dia Maradona marcou os dois golos que derrotaram a Inglaterra, restituindo dignidade à Argentina. Foram os dois golos mais paradigmáticos de toda a história do futebol.

Maradona foi também um herói napolitano. Quando chegou ao SSC Nápoles, em 1984, o clube, em 58 anos de existência, apenas tinha ganho duas Taças de Itália, sendo sistematicamente derrotado pelos clubes ricos do norte do país. Maradona, figura maior de um plantel modesto, conferiu vitórias, orgulho e dignidade aos napolitanos convertendo-se numa figura venerada à semelhança do padroeiro San Gennaro.

Ainda que a ascensão e queda de Maradona se constitua como uma história linear, a sua espessura como personalidade capaz de pronunciar o mundo resulta de uma complexa conjugação de fatores: desde logo, a sua excecional qualidade desportiva que o converteu num dos maiores futebolistas de sempre; a condição heroica dos seus feitos desportivos, em particular o “golo com a mão de Deus” e o “golo do século”; o relato das suas origens pobres, e da forma épica como ascende a pibe de oro, nunca renegando o lugar de onde partiu, nem a solidariedade para com os seus iguais; a atitude rebele e provocatória, bem como a disponibilidade para a denúncia das injustiças futebolísticas e sociais, colecionado por isso inimigos; os excessos pessoais na vida sentimental, nos comportamentos sociais e no consumo de drogas; e ainda o mediatismo da comunicação social que exaltou os seus feitos para depois o apresentar como o herói corrompido das camadas inferiores. Todos estes fatores converteram Maradona numa poderosa narrativa desportiva e social.

Diz Paulo Freire que “a existência, porque humana, não pode ser muda, nem tão pouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo”. Maradona não se calou perante os cenários com que se confrontou. Sintonizado com as questões dos humildes e com a justiça social, constitui-se simbolicamente como uma espécie de Evita Perón das décadas de 80 e 90, a personalidade retumbante no coração do povo argentino, e de muitos povos do sul global. Maradona, el pibe de oro, pronunciou o mundo, não através de discursos, mas através da simples complexidade do futebol, com as suas fintas, remates e golos. Por isso, “se eu fosse Maradona / Viveria como ele / Porque o mundo é uma bola / Que se vive à flor da pele” (Letra da música La vida tombola de Manu Chao).


 
 
pessoas
Carlos Nolasco



 
temas
contemporaneidade    maradona    futebol