A pandemia do novo coronavírus veio pôr em causa muitas das certezas que se tinham consolidado nos últimos quarenta anos. A pandemia do novo coronavírus veio pôr em causa muitas das certezas políticas que pareciam ter-se consolidado nos últimos quarenta anos sobretudo no chamado Norte global. As principais certezas eram: o triunfo final do capitalismo sobre o seu grande concorrente histórico, o socialismo soviético; a prioridade dos mercados na regulação da vida não só económica como social, com a consequente privatização e desregulação da economia e das políticas sociais e a redução do papel do Estado na regulação da vida colectiva; a globalização da economia assente nas vantagens comparativas na produção e distribuição; a brutal flexibilização (precarização) das relações de trabalho como condição para o aumento do emprego e o crescimento da economia. No seu conjunto, estas certezas constituíam a ordem neoliberal. Esta ordem alimentava-se da desordem na vida das pessoas, sobretudo das que chegaram à vida adulta durante estas décadas. Basta recordar que a geração dos jovens que entrou no mercado de trabalho na primeira década de 2000 já conheceu duas crises económicas, a de 2008 e a actual crise decorrente da pandemia. Mas a pandemia significou muito mais que isso. Mostrou, nomeadamente, que é: o Estado (e não os mercados) que pode proteger a vida dos cidadãos; que a globalização pode pôr em perigo a sobrevivência dos cidadãos se cada país não produzir os bens essenciais; que os trabalhadores com empregos precários são os mais atingidos por não terem qualquer fonte de rendimento ou protecção social quando o emprego termina, uma experiência que o Sul global conhece há muito; que as alternativas social-democratas e socialistas voltaram à imaginação de muitos, não só porque a destruição ecológica causada pela expansão infinita do capitalismo atingiu limites extremos, como porque, afinal, os países que não privatizaram nem descapitalizaram os seus laboratórios parecem ter sido os mais eficazes na produção e mais justos na distribuição de vacinas (Rússia e China).
Não admira que os analistas financeiros ao serviço dos que criaram a ordem neoliberal prevejam agora que estamos a entrar numa nova era, a era da desordem. Compreende-se que assim seja uma vez que não sabem imaginar nada fora do catecismo neoliberal. O diagnóstico que fazem é muito lúcido e as preocupações que revelam são reais. Vejamos alguns dos seus traços principais. Os salários dos trabalhadores no Norte global estagnaram nos últimos trinta anos e as desigualdades sociais não cessaram de aumentar. A pandemia veio agravar a situação e é muito provável que dê azo a muita agitação social. Neste período, houve, de facto, uma luta de classes dos ricos contra os pobres, e a resistência dos até agora derrotados pode surgir a qualquer momento. Os impérios em fase final de declínio tendem a escolher figuras caricaturais, sejam elas Boris Johnson na Inglaterra ou Donald Trump nos EUA, que apenas aceleram o fim. A dívida externa de muitos países em resultado da pandemia será impagável e insustentável e os mercados financeiros não parecem ter consciência disso. O mesmo sucederá com o endividamento das famílias, sobretudo de classe média, já que foi este o único recurso que tiveram para manter um certo nível de vida. Alguns países escolheram o caminho fácil do turismo internacional (hotelaria e restauração), uma actividade por excelência presencial que vai sofrer de incerteza permanente. A China acelerou a sua caminhada para voltar a ser a primeira economia do mundo, como foi durante séculos até ao início do século XIX. A segunda onda de globalização capitalista (1980-2020) chegou ao fim e não se sabe o que vem depois. A época da privatização das políticas sociais (nomeadamente, da medicina) com largas perspectivas de lucro parece ter chegado ao fim.
Estes diagnósticos, por vezes desassombrados, dão a entender que vamos entrar num período de opções mais decisivas e menos cómodas do que as que vigoraram nas últimas décadas. Antevejo três caminhos principais. Designo o primeiro por negacionismo. Não partilha o carácter dramático da avaliação exposta atrás. Não vê na actual crise nenhuma ameaça ao capitalismo. Pelo contrário, acha que ele se fortaleceu com a crise actual. Afinal, o número dos bilionários não cessou de aumentar durante a pandemia e, aliás, houve sectores que viram aumentar os seus lucros em resultado da pandemia (veja-se o caso da Amazon ou das tecnologias de comunicação, zoom, por exemplo). Reconhece-se que a crise social vai agravar-se; para a conter, o Estado apenas tem de reforçar o seu sistema de “lei e ordem”, fortalecer a sua capacidade de reprimir os protestos sociais que já começaram a acontecer, e que certamente irão aumentar, ampliando os corpos de polícia, retreinando o exército para actuar contra “inimigos internos”, intensificando o sistema de vigilância digital, ampliando o sistema prisional. Neste cenário, o neoliberalismo vai continuar a dominar a economia e a sociedade. Admite-se que será um neoliberalismo geneticamente modificado para poder defender-se do vírus chinês. Entenda-se, um neoliberalismo em tempo de intensificada guerra fria com a China e, por isso, combinado com algum tribalismo nacionalista.
A segunda opção é a que corresponde mais fielmente aos interesses dos sectores que reconhecem serem necessárias reformas para que o sistema possa continuar a funcionar, ou seja, para que a rentabilidade do capital possa continuar a estar garantida. Designo esta opção por gatopardismo, com referência ao romance Il Gattopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1958): é preciso que haja mudanças para que tudo fique na mesma, para que o essencial esteja garantido. Por exemplo, deve ampliar-se o sector público da saúde e reduzir as desigualdades sociais, mas não se pensa em alterar o sistema produtivo ou o sistema financeiro, a exploração dos recursos naturais, a destruição da natureza ou os modelos de consumo. Esta posição reconhece implicitamente que o negacionismo pode vir a dominar e teme que, a prazo, isso leve à inviabilidade do gatopardismo. A legitimidade do gatopardismo está baseada numa convivência que se sedimentou nos últimos quarenta anos entre capitalismo e democracia, uma democracia de baixa intensidade e bem domesticada, para não pôr em causa o modelo económico e social, mas mesmo assim garantindo alguns direitos humanos que tornam mais difícil a recusa radical do sistema e a insurgência anti-sistémica. Sem a válvula de segurança das reformas, acabará a paz social mínima e, sem ela, a repressão será inevitável.
Há, no entanto, uma terceira posição que designo por transicionismo. Por enquanto habita apenas no inconformismo angustiado que aflora em múltiplos lugares: no activismo ecológico dos jovens urbanos, um pouco por todo o mundo; na indignação e na resistência dos camponeses, povos indígenas e afrodescendentes e povos das florestas e das regiões ribeirinhas perante a invasão impune dos seus territórios e o abandono do Estado em tempos de pandemia; na reivindicação da importância das tarefas de cuidado a cargo das mulheres, ora no anonimato das famílias, ora nas lutas dos movimentos populares, ora à frente de governos e das políticas de saúde de vários países; num novo activismo rebelde de artistas plásticos, poetas, grupos de teatro, rappers, sobretudo nas periferias das grandes cidades, um conjunto vasto a que podemos dar o nome de artivismo. Esta é a posição que vê na pandemia o sinal de que o modelo civilizacional que domina o mundo desde o século XVI chegou ao fim e que é necessário iniciar uma transição para outro ou outros modelos civilizacionais. O modelo actual assenta na exploração sem limites da natureza e dos seres humanos, na ideia do crescimento económico infinito, na prioridade do individualismo e da propriedade privada, no secularismo. Este modelo permitiu avanços tecnológicos impressionantes mas concentrou os benefícios em alguns grupos sociais ao mesmo tempo que causou e legitimou a exclusão de outros grupos sociais, aliás maioritários, por via de três modos de dominação principais: exploração dos trabalhadores (capitalismo), racismo legitimador de massacres e pilhagens de raças consideradas inferiores e apropriação dos seus recursos e saberes (colonialismo) e sexismo legitimador da desvalorização do trabalho de cuidado das mulheres e da violência sistémica contra elas no espaços doméstico e público (patriarcado).
A pandemia, ao mesmo tempo que agravou estas desigualdades e discriminações, tornou mais evidente que, se não mudarmos de modelo civilizacional, novas pandemias continuarão a fustigar a humanidade e os danos que elas causarão na vida humana e não humana são imprevisíveis. Como não se pode mudar de modelo civilizacional de um dia para o outro, é necessário começar a desenhar políticas de transição. Daí a designação de transicionismo.
Em meu entender, o transicionismo, apesar de ser uma posição por agora minoritária, é a posição que me parece carregar mais futuro e menos desgraça para a vida humana e não humana do planeta. Merece, pois, mais atenção. Partindo dela, podemos antecipar que vamos entrar numa era de transição paradigmática feita de várias transições. As transições ocorrem quando um modo dominante de vida individual e colectiva, criado por determinado sistema económico, social, político e cultural, começa a revelar crescentes dificuldades em reproduzir-se ao mesmo tempo que, no seu seio, começam a germinar, de modo cada vez menos marginal, sinais e práticas que apontam para outros modos de vida qualitativamente distintos. A ideia da transição é uma ideia intensamente política porque pressupõe a existência alternativa entre dois horizontes possíveis, um distópico e outro utópico. Vista do transicionismo, o não fazer nada, que é próprio do negacionismo, implica, de facto, uma transição, mas uma transição regressiva para um futuro irremediavelmente distóptico, um futuro em que se intensificarão e multiplicarão todos os males ou disfunções do tempo presente, um futuro sem futuro, já que a vida humana se irá tornar invivível, como já o é para muitas pessoas no nosso mundo. Pelo contrário, o transicionismo aponta para um horizonte utópico. E como a utopia por definição nunca se atinge, a transição é potencialmente infinita, mas nem por isso menos urgente. Se não começarmos já, amanhã pode ser demasiado tarde, como nos advertem quer os cientistas das mudanças climáticas e do aquecimento global, quer os camponeses que sofrem os efeitos dramáticos dos eventos climáticos extremos. A característica principal das transições é que nunca se sabe ao certo quando começam e quando terminam. É bem possível que o nosso tempo seja avaliado no futuro de modo diferente daquele que hoje defendemos. Pode mesmo vir a considerar-se que a transição já começou, mas sofre constantes bloqueios. A outra característica das transições é que ela é pouco visível para os que a vivem. Essa relativa invisibilidade é o outro lado da semi-cegueira com que temos de viver o tempo de transição. É um tempo de tentativa e erro, de avanços e recuos, de mudanças persistentes e efémeras, de modas e obsolescências, de partidas disfarçadas de chegadas e vice-versa. A transição só é plenamente identificável depois de acontecer.
O negacionismo, o gatopardismo e o transicionismo vão enfrentar-se nos próximos tempos, e o enfrentamento será provavelmente menos pacífico e democrático do que desejaríamos. Uma coisa é certa, o tempo das grandes transições inscreveu-se na pele do nosso tempo e é bem possível que venha a contradizer o verso de Dante. Escreveu Dante que a seta que se vê vir vem mais devagar (che saetta previsa viene più lenta). Estamos a ver a seta da catástrofe ecológica a vir na nossa direcção. Vem tão rápida que por vezes dá a sensação de já se ter cravado em nós. Se for possível removê-la, não será sem dor.