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12-11-2010        Le Monde Diplomatique

«Em Portugal, a evolução dos salários da função pública é um dos mais importantes factores de influência nas negociações salariais do sector privado. A redução de salários da função pública não poderá deixar de ter um forte efeito na moderação salarial no sector privado.» A página trinta e três do relatório do orçamento proposto pelo governo para 2011 sublinha a lógica da política económica em curso, que, com maiores ou menores encenações, conta com o apoio do Partido Social Democrata (PSD), de Aníbal Cavaco Silva e das fracções mais medíocres do capitalismo português: assegurar uma quebra nos rendimentos, directos e indirectos, do trabalho no sector público e, por arrastamento, no sector privado. Depois de propor um corte de 5% na massa salarial da função pública, o ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, afirmava que um corte de salários no sector privado «reforçaria a competitividade» .

Os cortes previstos de 10% nos gastos com o subsídio de desemprego e com o rendimento social de inserção, num contexto em que a taxa de desemprego passará, de acordo com as irrealistas perspectivas do governo, de 10,6% para 10,8%, o que ainda assim corresponde à destruição de noventa mil postos de trabalho, inscreve-se na mesma lógica, ou seja, aprofundar uma economia do medo tendente a levar à aceitação pelos assalariados, actuais e putativos, de reduções do poder de compra do seus salários e de deterioração das suas condições de trabalho. O que está aqui em jogo é um processo de transferência dos custos sociais do ajustamento à crise do capitalismo financeirizado para o «factor trabalho», a expressão de Cavaco Silva que é todo um programa político. Esta escolha política, simultaneamente nacional e europeia, assenta num diagnóstico e em hipóteses económicas dúbias, que escrutinarei antes de expor os contornos de uma alternativa de política económica mais robusta. Esta é tanto mais necessária quanto Portugal é, juntamente com a Itália e à excepção do Haiti, o país que menos crescimento cumulativo registou nos últimos dez anos a nível mundial (2,43% e 6,47%, respectivamente). Ao contrário do que se afirma por aí, os problemas das finanças públicas são consequência desta estagnação, que muito deve a um euro disfuncional e a outras factores estruturais, e não a sua causa .

Reduzir o Estado a uma família e o trabalho a um custo

Estamos perante a mais intensa política de austeridade desde o 25 de Abril, contabilizada, por agora, em mais de 11 mil milhões de euros em 2010 e 2011, representando 6,7% do produto interno bruto (PIB) português. Só somos ultrapassados pela Grécia (12,6% do PIB grego em três anos), afastamo-nos da Irlanda (4,4% em dois anos) e estamos muito longe da Espanha (1,4%) . O orçamento de 2011 prevê medidas de austeridade que ultrapassam os 5 mil milhões de euros, que se traduzirão numa forte quebra dos rendimentos das classes populares, apertadas pelos cortes brutais das despesas sociais e pelo aumento do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) em dois pontos percentuais para um recorde de 23%, num dos países da Europa onde este imposto penalizador dos mais pobres, que consomem o seu rendimento, mais pesa na estrutura de impostos . Juntem a isto, as reduções das despesas públicas nas áreas da saúde e da educação, os cortes nos abonos de família ou a perda de poder de compra das pensões e temos um processo de fragilização do Estado social que nos afasta ainda mais do ideal da universalidade e da gratuitidade no acesso, as duas melhores vias para garantir a sua eficácia redistributiva e sobrevivência política, a partir do momento em que todos os grupos sociais dele beneficiam.

Vale tudo para reduzir aceleradamente o peso do défice e da dívida no PIB? Isto num contexto económico tão periclitante e depois de uma crise económica que aumentou o défice, e logo a dívida. Estes aumentos evitaram uma depressão semelhante à dos anos trinta, graças aos efeitos dos chamados estabilizadores automáticos, ou seja, à quebra automática das receitas fiscais e ao aumento das despesas públicas num contexto em que os Estados, felizmente, têm maior peso . Vejamos o que aconteceu na zona euro: 0,6% de défice orçamental em média no ano de 2007; 6,3% do PIB em 2009. Aumentos generalizados do peso da dívida pública no PIB.

O governo e os economistas do medo que cirandam por Belém, pelos estúdios de televisão e pelas sinecuras públicas e privadas repetem a mesma cassete, sem cuidarem do contexto: equilíbrio das contas públicas a todo o custo, credibilidade internacional, financiamento da economia portuguesa, aumento da competitividade internacional, maior selectividade e sustentabilidade das políticas sociais. Estranhamente, os efeitos perversos da austeridade não são contabilizados num discurso moralista sobre as finanças públicas, que ora trata os défices como o resultado do «despesismo» de um governo que não se comporta como uma boa família, ora como o resultado do esforço titânico para debelar de forma resoluta a crise, que agora há que interromper para ganhar credibilidade perante mercados financeiros liberalizados que exigem remunerações usurárias para deterem dívida pública nacional.

Acontece que tentar desenhar políticas a pensar nos voláteis e especulativos «mercados» é um exercício votado ao fracasso. Os cortes comprimem o mercado interno, o que gera recessão e aumenta o desemprego. Ao prever um crescimento de 0,2%, assente exclusivamente nas exportações, o governo mostra a mesma miopia face ao desastre de que foram vítimas outros governos: por exemplo, na precoce Irlanda previa-se um crescimento de 1% para 2009, no seguimento da austeridade, e acabou-se com uma quebra de 10%….

A verdade é que o governo aposta nos cortes e num processo de deflação salarial para corrigir os desequilíbrios com o exterior, traduzidos num elevado endividamento externo, que é privado em cerca de 76%, numa União Europeia construída para que o trabalho seja visto apenas com um custo a conter e não como uma fonte de procura. O diabo está mesmo nos detalhes desta utopia. Quem fez as contas sabe que os cortes salariais, que imitariam uma desvalorização cambial a sério e indisponível num contexto de moeda única, são brutais. Entretanto, o comprimido mercado interno europeu, fruto da austeridade generalizada, assegurará uma saída para as exportações abaixo do que está previsto. A recuperação das exportações este ano deveu-se à estabilização das economias depois do colapso de 2009. A recessão pressionará as contas públicas e garantirá, neste ambiente intelectual moribundo, novos cortes. As falências e a quebra de rendimentos aumentarão as dificuldades em servir a dívida privada e pública e logo afectarão o financiamento de toda a economia, levando ao incumprimento dos pagamentos. Os especuladores sem freios ampliarão tudo. Entraremos num ciclo vicioso cada vez mais perigoso.

Os moralistas das finanças públicas farão a demagogia do costume, porque o peso da dívida pública num PIB diminuído poderá não cair como se espera e a poupança privada não tenderá a aumentar, visto que depende dos rendimentos gerados pela actividade económica. Esquecem-se que o Estado não se pode comportar como uma família sem onerar as famílias realmente existentes através do desemprego. Esquecem-se que a evidência histórica disponível indica que os efeitos keynesianos da austeridade são reais e dominantes, ainda por cima num contexto de taxas de juro baixas e de ausência de política cambial, um dos elementos que ajudou Portugal a sair da crise nos anos oitenta, no quadro do ajustamento patrocinado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) .

Para lá da austeridade simétrica

Perante esta catástrofe, o discurso das esquerdas sobre a política económica não pode ficar exclusivamente amarrado a propostas de justiça social focadas nas questões estruturais dos défices de equidade do sistema fiscal, traduzidos nos favores fiscais à banca e ao restante capital financeiro, ou na predação dos recursos públicos, por exemplo, através de ruinosas privatizações ou parcerias público-privadas, promotoras do controlo privado de serviços e infra-estruturas públicas. É preciso recusar a lógica da austeridade, mesmo que esta pudesse ser mais simétrica na distribuição dos fardos entre os diferentes grupos sociais. Esta opção de política económica amputa o mercado interno, uma das pernas necessárias ao crescimento, acentua a desindustrialização, mina as possibilidades de crescimento qualificado no longo prazo e atola duradouramente o país numa taxa de desemprego de dois dígitos. Isto para não falar dos problemas do incumprimento e reestruturação da dívida pública e privada, que se tornarão inevitáveis num contexto em que a zona euro poderá estar ameaçada. É preciso ter a coragem de dizer que a recessão, o desemprego e os desequilíbrios externos não serão debelados sem uma política pública de estímulo económico com escala europeia, que faça com que a política orçamental e monetária convirjam e acabe com a sua separação artificial, e sem uma política industrial de transformação da estrutura produtiva.

Para isso, é necessário, em primeiro lugar, que o Banco Central Europeu (BCE) possa imitar o Banco Central do Japão ou a Reserva Federal norte-americana e comportar-se com um verdadeiro banco central que emite moeda para financiar directa e parcialmente os défices públicos dos Estados. A proposta de Mike Weisbrot e Juan Montecino para a economia espanhola é um exemplo de bom senso, a replicar: os Estados periféricos não embarcariam em processos de consolidação orçamental aventureiristas enquanto a crise não estivesse debelada. Até lá, o BCE financiaria os défices no montante equivalente à austeridade programada . Juntem a isto a proposta feita por Ronald Janssen, economista ligado à Confederação Europeia de Sindicatos: em vez de usar o fundo europeu recém-criado para salvar os bancos do centro, impondo a austeridade nas periferias, apliquem-se esses recursos num programa de estimulo à escala europeia, criando-se assim um princípio de política contracíclica, numa União completamente desarmada do ponto de vista orçamental, financiando-se, por exemplo, programas de investimento em energia e redes de transporte .

Ao mesmo tempo, e como sugere João Ferreira do Amaral, as periferias devem reconquistar instrumentos de política industrial e comercial para debelar os défices permanentes nas suas relações com o exterior. Isto passa por permitir a suspensão temporária das exigentes regras do mercado interno europeu, que impõem a concorrência entre economias com capacidades competitivas muitos distintas, por forma a permitir ajudas aos sectores inovadores nacionais e alguma protecção face às importações . Se isso se conjugasse com a criação de mecanismos de coordenação salarial à escala europeia, que impedissem a continuada compressão dos custos laborais, em especial na Alemanha, bloquear-se-ia a destrutiva deflação salarial em que os países tentam ganhar vantagens comerciais à custa dos assalariados e de uma corrida para o fundo em que quase todos perdem. Uma alternativa a isto passaria pela criação dum mecanismo de saída temporária do euro, que permitisse uma desvalorização cambial promotora das exportações, conjugada com uma reestruturação da dívida e com ajudas europeias mais robustas.

Estas propostas são sensatas intelectualmente, mas de difícil concretização política. No fundo, elas exprimem a consciência de que a zona euro é uma criação disfuncional, uma utopia monetária, sem governo económico. No entanto, as elites dos países centrais, os grandes beneficiários deste processo, em conjunto com o sector financeiro e com os capitalistas de centro comercial e de construção civil das periferias, estão apostados é em reforçar o «estúpido» Pacto de Estabilidade e Crescimento com sanções financeiras para os «incumpridores» − mas apenas quando estes forem pequenos países, claro. O governo aceita acriticamente o moralismo das finanças públicas, que está de boa saúde também na União. A moralidade, nem por isso. De facto, as condições para uma economia civilizada, que crie empregos, que gere uma distribuição menos desigual, social e regionalmente, dos rendimentos e da riqueza e que seja ambientalmente sustentável estão cada vez mais distantes.

Neste cenário político, num contexto em que não podemos ficar nem sair da zona euro, a previsão de João Cravinho parece plausível: «a compressão interna prolongar-se-á por muitos anos, sendo inevitável o empobrecimento relativo do país» . No entanto, estou em crer que este cenário, que não se cinge a Portugal, não ocorrerá, pelo menos não no quadro da zona euro tal como a conhecemos. O colapso desta construção disfuncional poderá bem ser um cenário mais plausível. A história económica na Europa ainda não terminou.

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[1]Jornal de Negócios, 18 de Outubro de 2010.

[1]Ver, respectivamente, El País, 24 de Outubro de 2010, e João Rodrigues e Nuno Teles, «Para lá da economia-2012», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2010.

[1]Público, 2 de Outubro de 2010.

[1]Em Portugal, o regressivo IVA representa 8,7% do PIB e o progressivo IRS 5,8% do PIB; na zona euro a média é de 7,5% e de 7,9%, respectivamente.

[1]De fora ficou o tão propalado, pelo governo, aumento deliberado do investimento público. Este continuou, na realidade, sempre anémico. E foi parcialmente responsável pelo facto de Portugal ter sido um dos países europeus com os mais fracos estímulos económicos em percentagem do PIB.

[1]Arjun Jayadev e Mike Konczal, «The Boom Not the Slump: The Right Time for Austerity», Roosevelt Institute, 23 de Agosto de 2010, disponível em www.rooseveltinstitute.org.

[1]Mike Weisbrot e Juan Montesino, «Alternatives to Fiscal Austerity in Spain», Center for Economic and Policy Research, Julho de 2010.

[1]Ronald Janssen, «A Major Economic Stimulus to get Europe into Jobs and out of Debt», Economic discussion note 2010/3.

[1]João Ferreira do Amaral, «O impasse», Cadernos de Economia, Abril-Junho de 2010.

[1]Jornal de Negócios, 19 de Outubro de 2010.


 
 
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