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29-07-2020        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

Deus parece estar confinado. Pelo menos, desde que no século XVII se impôs a separação absoluta entre a natureza, enquanto res extensa, e os seres humanos, enquanto res cogitans.  A prova da existência de deus está na mente humana, porque só ela pode conceber um ser perfeitíssimo, infinito. Sendo imperfeita, a mente humana só é capaz de tal concepção porque alguém a inscreveu nela. Esse alguém é deus. A natureza é incapaz de uma tal concepção, e aí reside a sua incomensurável inferioridade em relação à mente própria dos humanos. Com a demonstração da existência de deus ficou provada a impossibilidade da co-existência com ele no mesmo mundo. Deus é do “outro mundo”, o seu “reino não é deste mundo”. Deus é a transcendência. 

Assim começou o confinamento de deus. Se até então já era difícil comunicar directamente com ele, daí em diante tornou-se impossível. Só os místicos o conseguiriam fazer, e sempre com altos custos pessoais. No mesmo processo em que deus foi humanizado, foi também desnaturalizado e, com ele, os seres humanos que o conceberam. E como não conseguem ser mente sem ser corpo natural, ao mesmo tempo que provaram a existência de deus, os seres humanos deixaram de o entender e deixaram de se entender entre si. Assim se desumanizaram. A humanização de deus redundou na desumanização dos seres humanos. O homo economicus (o homem económico) do capitalismo nascente, tal como o quase contemporâneo homo lupus homini (o homem lobo do homem) de Hobbes, são a expressão desta desumanização do humano. O ser competitivo, centrado no seu interesse individual, é um ser anti-social que vê nos semelhantes (nunca iguais) potenciais inimigos, e que só faz filantropia se dela resultar benefício próprio.

A incompreensão abissal do ser divino permitiu aos humanos dizer de deus tudo o que queriam e consoante as conveniências. A teologia sofreu então uma transformação qualitativa. Passou a tentar resolver o mal-entendido cartesiano, multiplicando as mediações que humanizavam falsamente deus. As ficções do “deus feito homem” ou o “corpo de deus” foram levadas ao paroxismo. O nazareno cruxificado do século XVIII barroco é um espetáculo visceral de primeira ordem, o espetáculo de um corpo cuja máxima exaltação é a mortificação e a morte. A economia da morte, em que o colonialismo e a escravatura prosperavam, encontrava nessas imagens um espelho cruel e um consolo desesperado. A exuberância das imagens escondia eficazmente as ficções teológicas. Escondia sobretudo as consequências trágicas dessas ficções, tal como muito antes as tinha vivido o jovem nazareno, ao concluir na cruz que nenhuma ambulância divina o viria salvar e afastar dele aquele “cálice”.

O confinamento do deus cartesiano a partir do século XVII foi fundamental para que em nome dele se pudessem cometer as maiores atrocidades. O jovem nazareno que morrera na cruz para “salvar o mundo” era agora invocado para justificar a imensidão das mortes de escravos e de povos originários para “salvar a economia”. Confinado, deus estava limitado à tele-presença. A presença real passou a ser dos intermediários, missionários, pastores, catedrais. Tal como hoje os entregadores de comida por aplicação ou aplicativo (os motoboys e as motogirls) não escolhem os restaurantes pela qualidade da comida, mas pelo valor da remuneração por entrega, os intermediários passaram a servir a comida espiritual consoante as prebendas que recebiam. Não o faziam por opção, faziam-no por necessidade. Serviam os senhores da terra que se serviam deles para consolidar o seu domínio.

Mas estaria o deus verdadeiramente confinado? Sendo infinito em todos os seus atributos, é impossível imaginar outro confinamento que não seja um acto originário, um auto-confinamento. Por outro lado, é um absurdo pensar que um ser infinito se confine. E é também impossível imaginar um motivo divino para o auto-confinamento. Medo de ser contaminado? Não é imaginável que deus corresse o perigo de ser contaminado por seres tão infinitamente inferiores, até porque, segundo a teologia cartesiana, os humanos não têm sequer o nanotamanho do vírus para poder contaminar deus. Medo de contaminar? É um absurdo pensar que o deus cartesiano temesse contaminar. Sendo infinito, tudo está contaminado e, simultaneamente, purificado por ele. A hipótese mais credível é que os teólogos, eles sim, tivessem medo que deus contaminasse o mundo. Talvez soubessem que a desnaturalização de deus era uma imposição tão forte e tão frágil quanto todas as outras imposições humanas. Para a consolidar tiveram que recorrer a múltiplas artimanhas arquitetónicas, pictóricas, sermónicas, teológicas que enganassem todos aqueles que não beneficiavam com o suposto confinamento de deus. Tais artimanhas foram as máscaras usadas eficazmente para supostamente proteger deus dos humanos, mas que realmente funcionavam para permitir aos humanos realizar livremente os seus negócios sem incorrer no risco que correram os “vendilhões do templo”.  Podemos, pois, concluir que deus não esteve confinado durante todos estes séculos. Esteve em toda a parte – como lhe competia. Apenas esteve ausente do discurso humano sobre ele. Ou melhor, o discurso predominante dos humanos sobre ele destinou-se a criar e a justificar a sua ausência. Afinal, onde esteve deus durante estes séculos? Sugerirá esta pergunta, em si, que deus deu algum sinal de que a teologia que nos impuseram chegou ao fim?

As chagas do nazareno do século XXI

No século XVII ocorreu uma grande clivagem nas reflexões sobre deus. À teologia cartesiana, que expus acima, opôs-se radicalmente a teologia espinosista.  Enquanto, para Descartes, deus é tão produto da mente humana quanto transcendente, para Espinosa deus é a infinitude de tudo o que existe, a substância, a natureza. “Deus sive Natura”. Deus, ou seja, a natureza, disse Espinosa. Não se trata da natureza desqualificada de Descartes (“natura naturata”) mas da natureza qualificante de tudo, a energia vital infinita que anima o mundo e a vida (“natura naturans”) e de que os seres humanos dependem em toda a sua finitude. Neste sentido, a natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza. Deus não é personalizável (como se fosse um humano potenciado ao infinito). Nem transcendente. Deus é deste mundo e de todos os outros mundos possíveis. Para Espinosa, só assim se pode dizer com verdade que deus é infinito e omnipresente. Distinguir entre aqui e além, dentro e fora, é a limitação própria dos humanos. Deus é a imanência do mundo e os seus infinitos atributos são os que explicam as limitações dos humanos. E não o contrário.

 Para Espinosa, a humanização dos humanos não está na sua desnaturalização, mas, pelo contrário, na sua naturalização qualificante. Ora o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado foram os motores modernos da desnaturalização. A natureza foi cartesianamente desqualificada para que o capitalismo a transformasse num recurso natural incondicionalmente disponível para os seres humanos. E foi igualmente desqualificada para que o colonialismo e o patriarcado transformassem em recurso humano subjugável e espoliável todos os seres humanos considerados radicalmente inferiores por supostamente estarem mais próximos da natureza, fossem eles negros, indígenas ou mulheres. Em suma, fossem eles corpos racializados e sexualizados. No mundo cartesiano, a desnaturalização de alguns só foi possível à custa da naturalização das grandes maiorias.

Esta naturalização desqualificante de seres humanos foi o produto de uma ignorância fatal em que vivemos desde o século XVII, a ignorância de que se alimentaram o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Os dois últimos existiram antes do capitalismo, mas foram reconfigurados por este para se transformarem em fontes de trabalho altamente desvalorizado (da escravatura aos auto-escravos informais ou uberizados) ou não pago (a economia submersa do cuidado quase totalmente a cargo das mulheres). E deus? É impossível imaginar um jovem nazareno espinosista. Mas se fosse possível, o sofrimento humano injusto e inabarcável que a naturalização desqualificante causou e continua a causar em tanto ser humano (escravatura, limpeza étnica, racismo, sexismo, homofobia) seriam chagas infligidas na humanidade. E o desmatamento industrial das florestas, a contaminação dos rios, a mineração a céu aberto, o fracking seriam igualmente chagas desta vez infligidas na mãe terra. Em conjunto, tais chagas constituiriam uma imensa e permanente crucifixão. Um segundo e muito mais doloroso calvário.

A pandemia do coronavírus é primeira notícia teológica do século XXI. Será que o anúncio inaugural do Evangelho de S. João “e o verbo fez-se carne” terá de ser substituído pelo anúncio crepuscular “e o verbo fez-se vírus”? Como quer que seja, uma nova teologia se anuncia. Parte de uma proposição nova, a proposição 37 da Primeira Parte da Ética de Espinosa. Pode formular-se de muitas maneiras nas diferentes línguas e cosmovisões do mundo e, à maneira espinosista, pode ser seguida de demonstrações, explicações, axiomas, escólios ou corolários. No mundo ainda eurocêntrico a proposição pode formular-se assim. Proposição: a naturalização cartesiana de tanto ser humano, provocada pela dominação capitalista, colonialista e patriarcal, ocorreu de par com a naturalização cartesiana de toda a vida não humana, e redundou num sacrifício imenso no altar global dos ídolos do dinheiro e do poder. Demonstração: tal como a vida humana é uma ínfima parte da vida não humana do planeta, o sacrifício da vida não humana foi imensamente mais vasto, mas foi ocultado com êxito pelo pensamento dominante ao serviço dos ídolos. Explicação: o sacrifício da vida não humana não encontrou outra forma de ser conhecido e denunciado senão contagiando com as suas chagas os altares e os ídolos. Axioma: O vírus é apenas a prova mais convincente neste século da existência de deus. Corolário I: um deus desconfinado é um perigo fatal para os ídolos do dinheiro e do poder. Corolário II: um deus desconfinado é finalmente um consolo eficaz e perene para a mãe terra e para todos aqueles que, por estarem mais próximos dela, foram juntamente condenados com ela, os condenados da terra de Franz Fanon.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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