Com um orçamento marcado por uma das mais ambiciosas reduções do défi ce público da Europa, como podem os mercados financeiros estar a penalizar-nos desta forma? Afinal, segundo o pensamento único, o nosso problema estaria na falta de controlo das contas do Estado e das famílias. A culpa seria sempre dos trabalhadores: com salários elevados, endividados e exigindo um Estado Social incomportável. Vale tudo para legitimar os sacrifícios. No entanto, os nossos serviços públicos são dos mais frágeis da Europa. O principal motivo de endividamento familiar foi a habitação, bem onde a provisão pública, ao contrário do que acontece nos países menos endividados da Europa, é quase inexistente. Finalmente, é sabido que os aumentos salariais estiveram em linha com os aumentos da produtividade.
Uma dose de austeridade, tal como um bom purgante, restituiria a saúde das contas públicas e a competitividade da economia. Todo o espectro político parece contagiado pela austeridade: quem taxar, onde cortar a despesa. Um debate trágico e paroquial.
Trágico porque esquece que é impossível um esforço simultâneo de poupança pública e privada sem uma contracção da economia, particularmente num contexto de défi ce externo estrutural, refl exo de uma integração dependente. A redução do défi ce público sem crescimento económico só se consegue com um aumento simétrico dos “défi ces” privados ou com um extraordinário aumento da procura externa e estas alternativas são impossíveis no actual contexto. Estamos já a seguir a receita do FMI, mesmo que sem uma das variáveis que tornaram este ajustamento menos doloroso antes da moeda única, a desvalorização cambial. A recusa da política de austeridade – constrangimento assumido por todo o espectro político nacional – deve ser, pois, liminar, já que, qualquer que seja o modelo de aplicação e a distribuição do seu fardo, o resultado é um só: recessão, e desemprego, sem perspectiva de crescimento futuro.
Paroquial porque a discussão ignora as origens estruturais e conjunturais da actual crise internacional. Do lado estrutural, temos uma arquitectura monetária europeia deficiente nos seus instrumentos e assimétrica nas suas consequências. Desde os anos de Governo de Cavaco Silva, a economia portuguesa seguiu uma trajectória inalterada: uma política assente na convergência nominal com os nossos parceiros europeus, seguida pela moeda única, criou um enviesamento favorecedor do sector dos bens não transaccionáveis (como o imobiliário) em detrimento dos bens destinados à exportação. Essa política foi aliada à privatização e liberalização dos mercados. Esqueceu-se que o problema estava na qualidade do nosso capital.
Os crescentes desequilíbrios externos – o custo de uma transição para uma economia mais qualifi cada que os “mercados livres” mais cedo ou mais tarde permitiriam – seriam fi nanciados pelo recurso à dívida de baixo custo. Tais desequilíbrios tornaram-se salientes com a crise fi nanceira internacional iniciada em 2007. Com o sistema fi nanceiro em colapso e a economia a afundar, os estados viram-se obrigados a intervir energicamente na economia por forma a prevenir uma nova Grande Depressão. Para lá dos estabilizadores automáticos, a inevitável socialização das perdas dos bancos traduziu-se num aumento dos défi ces públicos. Não satisfeitos pela factura apresentada aos contribuintes pelos desvarios do sistema fi nanceiro, os mesmos mercados pedem um segundo pagamento através da especulação das taxas de juro da dívida pública.
Colocar os problemas da economia portuguesa no contexto de uma integração europeia insustentável e de uma economia fi nanceirizada não signifi ca, contudo, aceitar a actual rendição. Só um bom diagnóstico pode apontar os caminhos a seguir. No campo europeu, é urgente que Portugal abandone o comportamento do “bom aluno” e, articulado com os outros países periféricos, recuse as imposições do eixo Berlim-Paris e a política de austeridade que lhes está associada. Nós também temos voto nas instituições europeias. Face à ameaça de uma reestruturação da dívida organizada pelos nossos credores, apontada como causa próxima do recente aumento das taxas de juro, Portugal e os restantes países periféricos devem responder com a ameaça de uma reestruturação da dívida por si organizada. Uma auditoria à nossa dívida pública seria um primeiro passo para sabermos quem detém os nossos títulos e em que condições. Só assim saberemos quem está a ganhar com a nossa desgraça.
A resposta aos problemas europeus deve ser europeia: a transformação do fundo europeu de estabilização financeira, criado em Maio, num pacote de estímulo às economias europeias e a reorientação do comportamento do BCE, imitando a Reserva Federal, para o apoio às economias europeias são um primeiro passo nesse sentido. Adicionalmente, as periferias devem reconquistar instrumentos de política industrial e comercial para debelarem os défi ces permanentes nas suas relações com o exterior. Isto passa por permitir a suspensão das exigentes regras do mercado interno europeu por forma a permitir ajudas aos sectores inovadores nacionais e alguma protecção face às importações. A alternativa não é menos clara pelo facto de não ser discutida no nosso país: ou o euro se reforma ou o euro termina. Neste momento, o FMI já aterrou na Portela, mas fez escala em Bruxelas. Economistas, investigadores universitários, respectivamente, no Centro de Estudos Sociais e na Universidade de Londres, co-autores do blogue Ladrões de Bicicletas (www.ladroesdebicicletas.blogspot.com)