No plano político, entrámos no período pós-pandemia com as decisões do Governo sobre a TAP. Elas marcaram o fim do consenso político. Pode parecer surpreendente que a injecção de dinheiro no Novo Banco, hoje entregue ao capital financeiro especulativo estrangeiro, tenha levantado menos polémica. Por um lado, o financiamento da TAP tem fins produtivos, enquanto o do Novo Banco visa apenas financiar especuladores. Por outro lado, ambos os dossiers são ainda consequências das negociações desastrosas para o interesse nacional em que a direita capitaneada por Passos Coelho envolveu o país entre 2011 e 2015. Neste período não houve privatizações, houve privataria, tal foi a lesão do interesse nacional. Em ambos os casos, o actual Governo tem de viver com decisões escandalosas. Porquê então toda a agitação da direita contra a decisão do governo de financiar a TAP, assumindo o controle da gestão da empresa?
Para responder é necessário ter em conta as profundas raízes que o neoliberalismo deixou na classe política e nos comentadores políticos ao seu serviço. Entregar dinheiro ao Novo Banco sem qualquer controle sobre o modo como será utilizado é um acto de gestão e cumprimento de compromissos que devem ser honrados. Pelo contrário, financiar uma empresa de importância estratégica nacional com condições para acautelar o interesse público é ideologia. É importante analisar mais em detalhe o que está em causa na TAP para avaliar o enviesamento das análises de direita que dominam quase em absoluto na opinião pública, incluindo os canais públicos de televisão (sobretudo a RTP 3).
Comecemos pela história que é omitida. É importante recordar que a privatização foi feita numa sala à porta fechada, sem direito a comunicação social, já depois de o Governo do Passos Coelho ter sido chumbado pela esquerda que anunciara ser contra a venda da TAP. A reversão realizada pelo novo Governo foi insuficiente porque significou envolvimento de dinheiro público sem controle de gestão. Pesou o receio das reacções dos mercados ainda embriagados pela fúria privatística selvagem do período anterior, reacções que poderiam atingir o coração da aliança política de esquerda que acabava de nascer. Também haveria medo das reacções de Bruxelas e talvez pouca confiança na capacidade do Estado em lidar com a pressões por parte dos trabalhadores da empresa.
Analisemos agora o que se passou nos últimos dias para tentar explicar as reacções da direita. Quatro anos depois, o Governo é chamado a financiar a empresa e, compreensivelmente, não o quer fazer sem poder ter algum controle sobre o modo como a empresa vai usar o dinheiro. Compreensivelmente, por várias razões. Primeiro, a lealdade do investidor privado principal ao projecto nacional TAP era zero. O objectivo de David Neeleman foi sempre vender a TAP e por isso a lógica foi sempre a de um crescimento desmesurado da empresa, que tem hoje mais 18 aviões do que o previsto no Plano Estratégico, o que implica 1300 trabalhadores a mais e inúmeras rotas não previstas. E já agora, como os privados sabem gerir tão bem, é bom lembrar que nesse plano prometeram lucros de 150 milhões de euros acumulados em 2018 e 2019. A verdade é que tiveram prejuízos de 225 milhões, ou seja, um desvio de 375 milhões de euros em dois anos. Finalmente, Neeleman quis lançar uma oferta pública inicial (IPO) que entregaria a sorte da TAP ao mercado de valores, uma intenção que o Estado bloqueou. Acresce que esteve em negociações com a Lufthansa para vender a sua participação.
Mas a “lealdade” de Neeleman não termina aqui. Se, por um lado, o accionista pedia dinheiro ao Estado para salvar a TAP, haveria, por outro lado, garantias que a sua outra empresa, a companhia Azul, detentora de importantes créditos sobre a TAP, não os levantaria antecipadamente, o que significaria a imediata insolvência da TAP? Os sinais que isto pudesse acontecer eram perturbadores, o que pode pôr em dúvida até que ponto havia interesse em “salvar” a TAP.
Perante tudo isto, como garantir que a TAP continuasse a ser uma empresa estratégica para a coesão territorial e para o espaço internacional e diaspórico de língua portuguesa? A nacionalização dura poderia levar à insolvência e certamente envolveria litígios jurídicos. É assim tão difícil de entender que a solução encontrada foi a possível para superar da melhor maneira a lesão do interesse nacional ocorrida na negociata à porta fechada de 2015?
Em face disto, pode perguntar-se porquê toda a sanha conservadora contra esta decisão que garante a continuidade de uma empresa que é essencial para o equilíbrio das contas externas, uma vez que sem ela iríamos ter mais importações (compra de bilhetes a empresas estrangeiras), menos exportações e menos PIB. Penso que não tem muito a ver com a TAP. Tem a ver com o fim de um ciclo político em que a direita esteve em permanente contrapé.
Durante a pandemia, ninguém se lembrou de ir pedir aos omniscientes “mercados” que os protegesse. Foram pedir ao Estado e nem sequer por opção. Era a única via possível. O Estado, de alguma maneira, reabilitou-se, protegendo a vida sobretudo das classes sociais que mais precisam dos serviços públicos de saúde. Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde veio reconhecer, através do seu director-geral, que “Portugal tem um dos poucos bons sistemas de saúde do mundo”. Ora tudo isto incomoda profundamente a direita. Tem, pois, de começar a corroer o êxito do Governo socialista e naturalmente o seu elo mais apetecível é a ala esquerda do Governo representada pelo ministro das Infraestruturas. Daí a TAP e amanhã qualquer outro tema sob a sua alçada.
No pólo político oposto, está o crescendo da oposição do PCP. A política voltou em pleno e francamente sem grandes novidades. O PCP sente que sofreu perdas com a maior proximidade ao PS na anterior legislatura. A solução que encontrou mostra que não analisou com cuidado as razões por que o Bloco de Esquerda não só não sofreu perdas significativas, como se tem vindo a creditar cada vez mais como um grupo de mulheres e homens jovens, politicamente esclarecidos e tecnicamente muito bem preparados.
Oxalá não voltemos aos tempos de 2011, em que a esquerda se alia à direita para derrubar um governo de centro-esquerda. As elites económicas não querem lembrar o que se passou depois, mas a maioria da população, sobretudo a mais pobre, certamente não poderá esquecer.