Se tivéssemos de escolher uma das palavras do momento, teletrabalho seria uma delas certamente. A pandemia COVID-19 conferiu um protagonismo inédito ao teletrabalho, apontando-o como a nova solução milagrosa capaz de tornar o trabalho mais “amigo” da vida familiar, da realização pessoal, da produtividade… Enfim, parece que o teletrabalho veio para ficar. Mas será que o queremos mesmo? E, se sim, em que moldes o queremos?
Entre defensores e críticos, a polémica está bem acesa. Será benéfica, ou do interesse dos trabalhadores, a maior flexibilidade que se pode ganhar através do teletrabalho? Para muitos empregadores, esse caminho afigura-se como irreversível. Mas podemos estar a abrir uma Caixa de Pandora.
Portugal é um pioneiro no que respeita à introdução do teletrabalho no Código do Trabalho no plano europeu. Foi em 2003. No entanto, o recurso ao teletrabalho sempre foi algo limitado, talvez por conservadorismo dos empregadores, mas também porque os dispositivos de controlo sobre a atividade exercida remotamente seriam escassos. Além de um grande número de atividades “supostamente” não se coadunarem com o seu exercício. Agora tudo mudou. No contexto da pandemia COVID-19, os avanços tecnológicos permitiram a elevação do teletrabalho a ferramenta essencial à manutenção da atividade económica mas também, há que admiti-lo, de muitos postos de trabalho. Com a passagem do teletrabalho de pouco mais que esporádico a norma levantam-se várias questões. Comecemos então por aspetos mais formais que decorrem da sua regulação.
As lacunas da regulação: o que está em jogo
O exercício de atividade em regime de teletrabalho, definido como a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação, é regulado pelos artigos 165º a 171º do Código do Trabalho (CT). São conferidos ao trabalhador os mesmos direitos e deveres dos demais, nomeadamente quanto a formação e promoção ou carreira profissionais, limites do período normal de trabalho e outras condições de trabalho. Entre outros aspetos, a entidade empregadora é responsável por proporcionar formação adequada sobre a utilização de tecnologias de informação e de comunicação inerentes ao exercício da atividade.
O CT regula o teletrabalho de forma generalista, como se pode ver. É natural pois a função do CT é estabelecer os mínimos a serem respeitados, cabendo aos Instrumentos de Regulação Coletiva de Trabalho (IRCT) tornar essa regulação mais específica quanto a direitos, deveres e condições (de prestação do trabalho e de remuneração, incluindo a parte variável desta), adaptando-a à realidade do setor ou atividade em causa. Grande parte dos IRCT não contêm qualquer menção ao teletrabalho, remetendo portanto para o CT quando se afigura necessária a sua introdução, como aconteceu com a situação de pandemia, o que abre as portas à discricionariedade patronal quanto a certas matérias.
É o caso, por exemplo, do subsídio de alimentação. Existem vários entendimentos quanto à sua manutenção em situação de teletrabalho. É portanto uma “área cinzenta”. Mais uma, aliás. Foram reportadas inúmeras tentativas de redução de remuneração e subsídios para os trabalhadores em teletrabalho. Nesse sentido, impõe-se estimular a negociação coletiva no âmbito do teletrabalho (bem como as ações inspetivas). Cabe aos parceiros sociais envolvidos na negociação o estabelecimento de condições mais favoráveis que as definidas pelo CT. Nomeadamente, é relevante reforçar e detalhar a responsabilidade do empregador em relação aos meios (em particular, tecnológicos) e despesas inerentes ao exercício da atividade, bem como a manutenção de rendimento e subsídios, definição clara de horário de trabalho, direito a desligar, etc. As grandes empresas que recorreram massivamente ao teletrabalho reportam como um aspeto positivo a redução dos custos operacionais. Não é por isso de estranhar que o apontem como uma modalidade a que pretendem dar continuidade. Contudo, esses custos não desapareceram. Foram sim transferidos para o trabalhador.
Entre promessas e contradições
O teletrabalho comporta aspetos que, embora não deixem de lhe estar ligados, transcendem o âmbito da regulação. O primeiro que cabe mencionar tornou-se por demais evidente durante a fase de confinamento e contradiz uma das principais vantagens comummente anunciadas: a conciliação com a vida familiar. Como alguém já disse, no período mais recente o teletrabalho generalizou-se com “ingredientes pouco adequados” à mistura. A produtividade até pode ter aumentado, como referem muitos empregadores, mas multiplicam-se os relatos acerca da dificuldade em mante-la quando se tem filhos menores, muitos em telescola, ou outros dependentes a cargo. Os equipamentos que asseguravam o cuidado aos filhos e dependentes mencionados foram encerrados por razões de saúde pública. E os trabalhadores em teletrabalho, sujeitos aos mesmos horários e índices de produtividade, ficaram literalmente com o “bebé no colo”. Convenhamos, isso ultrapassa em muito o “multi-tasking” já habitual e é a receita para situações de cansaço extremo. Muito diferente da virtuosa conciliação entre vida familiar e trabalho anunciada. Mas, como em tudo, o teletrabalho não é inevitavelmente bom ou mau. No que respeita a conciliação entre vida familiar e trabalho, as condições dos últimos meses foram claramente excecionais, pelo que a adoção desta modalidade pode comportar ganhos para o trabalhador. Isto desde que se cumpram outras “promessas”.
Uma dessas “promessas” é a de uma maior autonomia, frequentemente associada a índices mais elevados de realização pessoal e profissional. Mas essa autonomia é, não raras vezes, traída por solicitações excessivas (o incumprimento do direito a “desligar” e consequente aumento do tempo de trabalho), pela implementação de mecanismos de controlo intrusivos que esbarram com o direito à privacidade. As webcams em ambiente familiar ou a visita pelo empregador entre as 9h e as 19h, prevista no CT, mesmo só tendo por objeto o controlo da atividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho, não deixam de ser intrusivas. Por outro lado, o teletrabalho resulta numa maior dificuldade de fiscalização do cumprimento das condições de trabalho por parte das autoridades, deixando os trabalhadores mais expostos a eventuais abusos patronais.
Não obstante, não podem deixar de ser referidos outros ganhos “colaterais”, como o facto de o teletrabalho dispensar os trabalhadores das horas perdidas e despesas associadas a deslocações de e para o local de trabalho. E claro, não podemos deixar de sublinhar aqui a questão da redução do impacto ambiental associado a essas deslocações. A redução da pegada ecológica enquadra-se nos objetivos de desenvolvimento sustentável a serem perseguidos por governos, trabalhadores e empresas, pelos cidadãos de um modo geral. Podemos também associar o teletrabalho a um upgrade de competências. Exige literacia e competências digitais, colocando o problema da formação. São os empregadores capazes ou estão disponíveis para providenciar formação adequada aos seus trabalhadores? Essa é outra questão a pensar. Assim como as dinâmicas de exclusão que aí terão origem ou que daí sairão reforçadas.
Indesmentivelmente, o teletrabalho comporta o isolamento do trabalhador. Por mais que se aluda à panóplia de ferramentas e plataformas que tornam possível o contacto constante e quase real entre colegas e equipas, a verdade é que o local de trabalho como espaço de socialização deixa de existir. E esse é um espaço fundamental de socialização e construção de identidade(s). Deixamos de “sentir” o local de trabalho, deixamos de ter espaços e tempos de convívio como as pausas, deixamos de interagir com o corpo, deixamos de interpretar linguagens que vão para além da voz e de uma cara no ecrã. Que ninguém diga qua as interações sociais são preservadas pelos contactos e reuniões via Skype ou Zoom.
As identidades profissionais e coletivas também são feridas pelo teletrabalho. Podemos até falar de danos ao nível da consciência de classe. O isolamento, o afastamento do local de trabalho comum, têm a longo prazo reflexos em domínios como a construção de identidades coletivas e participação em organizações de representação coletiva, como os sindicatos e comissões de trabalhadores. Os efeitos sobre a ação coletiva são portanto negativos. Ainda que o CT defina algumas garantias nesses domínios, na prática existem várias limitações decorrentes do exercício da atividade em teletrabalho que influem negativamente sobre esse tipo de participação. Sejamos claros, a representação e ação coletivas são fundamentais à defesa e conquista de direitos, melhores condições de trabalho, em suma, às aspirações de trabalho digno para todos.
O futuro do trabalho para todos ou só para alguns?
Ao longo dos últimos meses constatámos a possibilidade de adequação de atividades tão diversas como o ensino à modalidade de teletrabalho. O teletrabalho parece ser um futuro ao qual nenhuma atividade ou trabalhador pode escapar. E as atividades e os trabalhadores incapazes de “casar” com o teletrabalho? Façamos um exercício simples: uma companhia de teatro, um espetáculo, uma sala vazia, live streamimg. Qualquer ator/atriz dirá que há um “diálogo” com o público, uma interação não declarada mas nem por isso inexistente. Ainda que exequível, algo se perde. Parece óbvio que o teletrabalho é aqui uma impossibilidade. Aqui como em outras atividades artísticas. Aqui como em muitas outras atividades.
Se o teletrabalho, ou a possibilidade de passagem a teletrabalho, mitigou o impacto do desemprego durante a fase mais aguda da COVID-19, o facto de o mesmo ser uma impossibilidade em alguns casos remete-nos para a necessidade de medidas de proteção face ao desemprego e de apoios reforçados em situações de inatividade forçada. Os profissionais das artes e do espetáculo foram dos mais atingidos pela pandemia. E as Artes e o Espetáculo não são um parente pobre, nem do ser humano nem da economia. Urge tomar decisões no sentido da sua proteção e valorização. É verdade que foram lançados apoios no contexto da COVID-19, mas chegaram tarde e não chegaram a todos. Essa é uma realidade sobre a qual devemos refletir e agir.