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19-06-2020        Público

A apologia, ou a efectiva concretização, da remoção ou da destruição de estatuária dedicada a personalidades ou eventos históricos tem suscitado debates acesos. Com profundidade e temporalidades diferentes, mas também com algumas semelhanças, estas discussões têm ocupado a comunicação social, a academia e movimentos diversos, de Joanesburgo a Bruxelas, de Richmond a Lisboa. Resultam de salutares disputas sobre o passado (sobretudo o colonial), sobre o modo como o invocamos, interpretamos e ensinamos, e com que fins.

Contudo, o entusiasmo peremptório nem sempre é acompanhado por preocupações de rigor histórico ou por reflexões aturadas sobre os seus fundamentos e as suas consequências. A reflexão e a dúvida têm dificuldade em sobreviver face à avidez opinativa e à injunção moral. Para uns são apenas expedientes dilatórios. Para outros, mero privilégio de privilegiados. Não são. São uma exigência imposta pelos acontecimentos.

Mas se o objectivo é o de, entre outros, criar condições para continuar a repensar a história e a sua expressão no espaço público, nos manuais escolares ou nas políticas públicas, a relevância deste tipo de “diálogos” é duvidosa. Para concretizar aquele precisamos de tempo, sabendo que, para muitos, o tempo já passou, há muito. Precisamos de investigação, sabendo que, para muitos, já se sabe tudo o que é preciso saber, o conhecimento é arbitrário, uma mera expressão do político e que todo ele é igualmente válido. Precisamos de ouvir, sabendo que, para muitos, já se ouviu em demasia ou que, para outros, a virtude está na repetição de um qualquer slogan, estereótipo ou dichote. Precisamos de ouvir todos, mesmo aqueles que nos permitem descortinar por onde não ir, de onde e de quem fugir. E, sim, precisamos de deixar que muitos falem, pois raramente o fazem ou podem fazer, e têm muito a dizer. Precisamos que falem ignorando os intermediários que vivem de proclamar que eles precisam de falar, indicando ainda o que têm que dizer, com zelo pastoral. Precisamos de conversar, reconhecendo que há muito que está errado, há tempo de mais.

Nada disto é fácil. Parece que estamos condenados ao extremismo e ao oportunismo instrumental, que apenas sobrevive, na verdade, do oxigénio fornecido pelo outro lado da barricada. Porém, não estamos fadados a isto. Há espaços de diálogo mais sadios e desempoeirados. Há muitas conversas a ter, conflituosas, por certo, mas mais estimulantes, sérias e úteis.

Tem-se misturado história e memória. Ausência de evidência com evidência de ausência. Análise histórica, posicionamento político e julgamento moral. Argumento e opinião. Moral e justiça. Facto e dado estatístico. Coincidência e causalidade. Intuição e demonstração. Claro que as fronteiras entre todas estas dimensões nem sempre são cristalinas. Longe disso. Mas há limites discerníveis. Só começamos a ver a sua porosidade quanto estudamos e investigamos. São também o estudo e a investigação, com o rigor possível, mas sempre inegociável, que nos ajudam a perceber onde e como os podemos distinguir, mesmo que reconhecendo a precariedade de tal operação. Permitem ainda perceber o que podemos, e devemos, discutir e transmitir, contribuindo para debates informados e decisões democráticas. Abandonar esse esforço, por facilitismo ou cinismo (ou ambos), não é apenas uma lamentável imprudência intelectual, é uma demissão cívica, e política, com consequências óbvias.

Vieira e Rhodes ou Mouzinho de Albuquerque. Leopoldo II e Joshua John Ward, Claude Trénonay ou John Gladstone. Ou Robert E. Lee. Zephaniah Kingsley Jr., Pedro Blanco e Piet Hein. Juan e José de Salazar, e Francisco Paulo de Almeida. Elizabeth Cady Stanton, Alice Harris e Sarah Pugh. Elisabeth “Zabeau” Bellanton e Ana Joaquina, Elisabeth Dieudonné Vincent e Suzanne Amomba Paillé. Azeredo Coutinho, Guillaume-Thomas Raynal ou Abbé Gregoire, ou David Livingstone e António Barroso. Gustavus Vassa ou Olaudah Equiano (que nome escolher?). Phyllis Wheatley, Toussaint L’Ouverture e Nat Turner. James Baldwin e Du Bois. Thomas Clarkson, Palmerston e Sá da Bandeira. Paul Leroy-Beaulieu, John Seeley e António Enes. Podíamos continuar, é claro.

O que sabemos do que se sabe sobre todas estas figuras, sobre os seus contextos históricos, sobre as suas circunstâncias, opções e constrangimentos? Falamos de uns e não de outros, estudamos uns e ignoramos outros. Em que é que nos podem ajudar a interrogar o passado e, sobretudo, pensar o presente? Quais vislumbramos no espaço público? Onde estão os monumentos e as estátuas aos que, em diversas circunstâncias, se opuseram a dinâmicas de exploração, a formas numerosas de discriminação, a violências várias? Aos que questionaram a moral do seu tempo, mostrando que esta nunca foi única e consensual? Onde estão eles, em maior número possível, sem ignorar ou uniformizar as suas circunstâncias, nos livros escolares, do ensino secundário à universidade? Na educação, que se quer permanente, de todos nós?

O que sabemos do que se sabe sobre o massacre do barco negreiro Zong? Dos tumultos de Cincinatti, em 1829, e daqueles, antiabolicionistas, em Nova Iorque, em 1834? Dos horrores em Cuba ou nas Filipinas em finais do século XIX? Das campanhas de “pacificação” na Argélia, nas colónias portuguesas, em Marrocos, na Líbia italiana? Dos carregadores africanos que morreram na primeira guerra mundial, em Moçambique e noutros territórios? Das inúmeras “expedições punitivas” e dos numerosos “estados de excepção”? Dos que de várias origens morreram nas guerras da descolonização e nas novas sociedades que se lhe sucederam? Dos que lidam com desigualdades, gritantes e interdependentes, no acesso à saúde e educação, ao emprego e à cidadania, ontem e hoje, hoje em grande medida por causa de ontem? E o que sabemos dos números sem nome, dos mortos sem sepultura, das vítimas sem cara, dos criminosos sem cadastro, dos assassinatos não filmados? O que deles podemos e devemos saber e ensinar mais, para mais e melhor exigir a quem de direito?

O que serve melhor a escrita crítica e rigorosa da história? O que é mais útil para o urgente combate à discriminação social, étnica, de género? E para os esforços, prementes, de construção de um espaço público que não celebre protagonistas de actos de violência material e simbólica sobre determinadas populações? Será a remoção ou destruição de monumentos e estátuas? Ou um investimento sistemático e pedagógico na transmissão de conhecimento histórico meticuloso que facilite, ao mesmo tempo, a tomada de posições cívicas consistentes e uma conversa que fuja de demagogos de extirpe vária? Ou ambos, removendo para facilitar uma contextualização eficaz? As respostas a estas e a muitas outras questões, nada óbvias e fáceis, são-nos exigidas, hoje.

Contextualizar o passado é, também, uma forma poderosa de compreender o presente. De iluminar e perceber os repertórios de desigualdades, de impedir que estes e a sua história sejam ignorados, obscurecidos ou desvalorizados. De facilitar o seu ensino, visando contribuir para a sua supressão. É suficiente? Seguramente, não. Não existem “antídotos” milagrosos, como a história tem vindo a mostrar. Mas é um requisito incontornável. Só nos resta educar, educar, educar. E ser ensinados, ouvir e aprender o que se sabe, procurando conhecer mais. Decidir melhor. Talvez sem grandes cerimónias ou coreografias, mas convictamente, insistentemente.

A destruição de uma estátua pode ser um acto de desistência cívica. A sua remoção pode ser o resultado de um gesto de maturidade cívica. Há outros caminhos, mais espinhosos, demorados, frustrantes, por certo. Mas menos solitários e mais solidários.


 
 
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Miguel Bandeira Jerónimo



 
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