No seu sentido antropológico, o fenómeno dos "rituais de iniciação"; pode ocorrer em diversos grupos e comunidades, servindo para marcar a "passagem"; de uma condição a outra ou a entrada de um novo membro. A sua importância será tanto maior quanto mais se trate de culturas coesas, fechadas e conservadoras, ou seja, aquelas cuja identidade se funda nas raízes e no passado. Os recém chegados são sujeitos a provas inequívocas de submissão à normas vigentes no seio do grupo ou da categoria onde acabaram de ingressar. Na tropa de elite, nos grupos religiosos fundamentalistas, em alguns colégios internos, em comunidades étnicas isoladas, etc., a iniciação dos novos "recrutas"; é particularmente dura e violenta, mas é suposto constituir uma forma eficaz de integração.
Certamente que essas tradições estão na origem da chamada "praxe académica";, que tem na Universidade de Coimbra o seu principal berço. No seu sentido mais lato, a praxe não se limita aos jogos de poder exercidos pelos mais velhos sobre os caloiros. Ela liga-se também à rigidez da hierarquia universitária e exprime-se numa sucessão de rituais institucionais que acompanham o académico ao longo de toda a sua carreira, desde que se inicia como estudante até – no caso dos docentes – à aula de jubilação, passando pelos actos solenes que decorrem na Sala dos Capelos (Doutoramento, provas de Agregação, etc.), onde a intensidade ritualista e o poder simbólico são ostentados em todo o seu esplendor.
Porém, pode dizer-se que, na cultura académica de Coimbra, as praxes (incluindo o uso da capa e batina) transportaram em diversos momentos, para além do sentido reprodutor da hierarquia e do fechamento da colectividade, um grande potencial de irreverência e até de dissensão política (cujo ponto alto terá sido a crise académica de 1969). Essa dimensão acompanhou no passado a vertente lúdica, burlesca e irónica, presente nos ambientes de boémia, nas tabernas, nas «Repúblicas» e na cultura estudantil em geral, desde tempos imemoriais.
Ora, esse passado alterou-se radicalmente nas últimas décadas. A universidade abriu-se, massificou-se e feminizou-se, tornando as praxes anacrónicas na sua actual forma. Com mais ou menos adulterações, o certo é que os contornos que hoje assumem espelham a vacuidade de valores, a desinformação e a superficialidade consumista em que navega a geração que mais beneficiou da democratização do acesso à universidade. O fantástico aumento da quantidade de estudantes, de mulheres e de descendentes da classe trabalhadora no ensino superior – num quadro em que as políticas de ensino são orientadas pela obsessão dos resultados estatísticos – só podia conduzir à perda de qualidade. E a própria mentalidade dos estudantes, os seus comportamentos, incluindo os jogos e rituais da praxe, se ressentem dessa tendência.
Hoje, tanto o espírito de irreverência como a função integradora das praxes praticamente desapareceram. O que persiste é a atitude marialva e sexista, de que se reveste a cultura praxista, herança de um tempo em que às mulheres era vedado o acesso à universidade (apesar de estarmos numa academia maioritariamente feminina). Em vez de se adaptarem à nova realidade, as regras da praxe foram deturpadas no pior sentido. O ritualismo actual mistura-se com a mercantilização dos lazeres e dos consumos juvenis. Por um lado, actividades como as saídas semanais para os bares e discotecas (que se repetem em dias certos da semana), as festas da Latada e da Queima das Fitas, os lazeres estudantis, etc., – e a própria actividade da Associação Académica (AAC), por exemplo –, são largamente formatados por patrocinadores, marcas e interesses económicos e, por outro lado, a actual geração de universitários revela um generalizado desconhecimento e indiferença perante a propalada "autenticidade"; do "Código da Praxe";, defendida pelo auto-designado "Conselho de Veteranos";.
Quem, como eu, assiste à repetição anual destes rituais, não pode ficar indiferente às formas alarves e fúteis (por vezes violentas e quase sempre humilhantes) de que muitos deles se revestem. Em Coimbra é comum deparamo-nos com grupos de jovens a exibirem-se em plena rua em tais posturas. Ainda há dias observei, estupefacto, umas vinte meninas a gritar frases de conteúdo obsceno ("nós só queremos é f....";) a mando das/os mais velhas/os. Coradas e imberbes ali estavam elas – contentes ou humilhadas, não se sabe, porque era proibido rir – sob a batuta dos/as pseudo-doutores/as, a mostrar a sua face mais ordinária.
Perante isto, o que se pode concluir é que a praxe perdeu autenticidade e perdeu sentido. E corre o risco de resvalar para uma generalização de comportamentos anti-sociais (e obrigar à acção repressiva), caso a colectividade, a começar pelo corpo estudantil, as estruturas associativas e as instituições universitárias não saibam travar a tempo as formas "rascas"; de que a mesma se vem revestindo nos últimos tempos.