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05-06-2020        Público

Desde que a reconstrução do Berliner Stadtschloss, o antigo Palácio da Cidade de Berlim, foi noticiada que não pára de gerar controvérsias. Neste projeto cultural, o mais caro da Europa atual, rondando já os 644 milhões de euros, têm confluído vários debates reveladores do estado da nação alemã. Sete décadas após a Segunda Guerra Mundial e três após a Reunificação, o país com a mais forte economia da Europa continua à procura da sua identidade nacional. A polémica mais recente em torno do edifício, cuja inauguração está planeada para o fim deste ano, incendiou-se em torno da cruz que foi colocada na cúpula na semana passada. Enquanto alguns adeptos veem nela o coroamento do projeto, a outros ela é indiferente ou encaram-na como sinal errado numa sociedade cada vez mais diversa.

Que sentido faz a reconstrução da residência barroca dos reis da Prússia, da dinastia que levou à unificação a “ferro e sangue” da Alemanha de então, dividida em inúmeros Estados descentralizados? A polémica em torno desta questão incendiou-se logo que a reconstrução do edifício de 40.000 metros quadrados foi anunciada. É que o papel reacionário que o rei prussiano desempenhou durante a revolução de 1848, ao revogar a promessa de uma constituição à multidão revoltosa e substituí-la por um regime autocrático, levou a que muitos berlinenses passassem a ver o Stadtschloss como símbolo de opressão e do militarismo prussiano. Que mensagem daria pois a Alemanha reunificada a si e à Europa ao reerguer no coração da cidade um símbolo de uma Alemanha autoritária e militar numa altura em que os olhos desconfiados do mundo ainda estavam postos no país? Ainda por cima, os impulsionadores e, em parte, financiadores do projeto são milionários alemães, alguns deles aristocratas.

A agravar a questão estava o entrelaçamento do edifício com outro capítulo da história alemã, nomeadamente a antiga República Democrática Alemã (RDA). Pois precisamente no lugar em que se pretendia reconstruir o palácio, que foi gravemente danificado pelo bombardeamento aliado durante a Segunda Guerra Mundial e que o governo comunista da RDA demoliu em 1950 por encará-lo como uma lembrança inaceitável do passado imperial, tinha sido construído o parlamento da Alemanha de Leste, o Palast der Republik. Quando o parlamento alemão decidiu, em 2003, demolir este edifício e financiar a reconstrução do palácio prussiano, vozes indignadas criticaram que isso equivalia à eliminação da herança alemã comunista, reforçando assim o sentimento dos alemães de Leste de serem “colonizados” pela Alemanha Ocidental.

Antevendo as acusações de se tratar, no fundo, da reconstrução reacionária e pastiche de um edifício histórico, os seus iniciadores decidiram quebrar o estilo barroco com outros elementos, tais como uma fachada moderna. Ademais, predestinaram o interior do palácio a uma utilidade museológica que baptizaram de Humboldt Forum, passando-lhe assim um verniz cosmopolita que o nome do explorador e naturalista Alexander von Humboldt sugere. Porém, tal decisão nada tinha de modesta. Na verdade, pretende-se que o Humboldt Forum seja um super-museu com exibições antropológicas e etnológicas, nada menos do que a resposta alemã ao British Museum. Alinhar-se-ia assim ao conglomerado de cinco museus (Altes Museum, Neues Museum, Alte National-Galerie, Bode-Museum e o Pergamon Museum) já existentes na parte norte da ilha dos museus à beira do rio Spree, construídos entre 1830 e 1930. Declarada património mundial da humanidade em 1999, ela já por si constitui uma das atrações principais no centro histórico de Berlim, visitada por milhões de turistas anualmente.

Porém, a estratégia de usar o interior do edifício para atenuar a reconstrução histórica de um edifício de tradição autoritária não produziu os efeitos esperados. Muito pelo contrário, ela desaguou numa das mais acesas polémicas atuais, nomeadamente sobre a “amnésia colonial alemã”, conforme apelidou o historiador Jürgen Zimmerer, um dos seus mais acérrimos críticos. Intelectuais como ele criticaram que, sob a capa de um discurso de tolerância e abertura ao mundo, os responsáveis do Humboldt Forum estavam na verdade a praticar uma revival da história da Prússia e a lidar com as coleções etnológicas e antropológicas sem ter em conta o contexto colonial em que os objetos foram adquiridos. Frustrada pela natureza do projeto, especialmente, pela falta de investigação sobre a proveniência dos objetos destinados a serem expostos, a francesa Bénédicte Savoy, historiadora de arte e mais tarde conselheira de Macron em questões de restituições de objetos coloniais aos países de origem, abandonou mesmo o cargo de conselheira no painel consultivo.

Após alguns adiamentos da inauguração do Humboldt Forum – planeada para Setembro de 2019 –, também eles objecto de críticas mordazes num país que dá muito valor à pontualidade e numa cidade já por si irritada pelos constantes adiamentos de um outro grande projeto na capital, nomeadamente o controverso aeroporto de Berlim, a polémica voltou agora a reacender-se. Desta vez em torno da cruz de cinco metros que foi erigida na cúpula do palácio, uma das mais altas e históricas da cidade.

Uns argumentam que a reposição da cruz, símbolo de tolerância e amor ao próximo, vem coroar o acabamento do edifício. A maioria, e até mesmo o jornal conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung, critica, no entanto, que a cruz não se coaduna com o espírito do museu que irá acolher e que pretende ser um ponto de encontro de culturas em pé de igualdade. Tanto mais que a epígrafe autoritária, exigindo que os súbditos da Alemanha e do mundo se subjuguem a Jesus, também foi recentemente reposta na cúpula. Num país com uma sociedade cada vez mais diversa, com migrantes de todos os cantos do mundo, em que diariamente ocorrem ataques racistas, incluindo a sinagogas, e em que os seus cinco milhões de cidadãos muçulmanos têm sido objeto de crescente discriminação, trata-se do sinal errado, assim dizem as críticas. Outros, por sua vez, não percebem a razão de toda a polémica dado que para eles a cruz nada significa num país em que um número crescente de cidadãos são ateus ou não praticantes, principalmente na parte ex-comunista da Alemanha.

Tudo indica que os impulsionadores tentaram evitar o debate sobre a cruz a todo o custo. Pois nem nos planos da fundação impulsionadora do projeto, a Förderverein Berliner Stadtschloss e.V. do milionário Wilhelm von Boddiens, nem no relatório da comissão de peritos internacionais, se encontra qualquer menção a ela. As deliberações do parlamento alemão sobre o tema em 2003, assim como o anúncio do concurso, também não tocaram na questão. Assim, o público foi apanhado se surpresa quando leu que a doação da viúva de uma das mais importantes firmas de venda por correspondência alemãs financiou a cruz. Tal levanta a questão sobre se este procedimento revela o carácter transparente e democrático que um projeto de parceria público-privada e que absorveu mais de 600 milhões de dinheiros públicos devia revelar.

Facto é que a cruz paira agora a 68 metros de altitude nos céus de Berlim. Curiosamente, o momento eleito para aí a erguer calhou curiosamente num dia antes do Pentecostes, altura cheia de simbolismo cristão e feriado na Alemanha. Teve de ser num dia sem vento, foi essa a justificação. Se o espírito cristão da cruz de facto se traduzirá nas outras línguas e culturas que o país alberga, isso só os ventos que soprarão na Alemanha e na Europa nas próximas décadas o dirão.


 
 
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Clara Ervedosa



 
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