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25-05-2020        Público

Num cenário mundial assolado pela pandemia covid-19, mais do que nunca, demarcam-se as características da modernidade tardia. O exacerbar de vulnerabilidades e desigualdades sociais, a escassa intervenção estatal e as condições de trabalho flexíveis e inseguras, assim como o aumento de catástrofes naturais, conduziram ao risco de extinção da própria vida humana.

Segundo Ricardo Antunes, o maquinário digital informativo disseminou-se, sobretudo, a partir do final do século XX. Segundo a Associação Portuguesa de Contact Centers, existem 100 mil operadores que prestam informações e procedem à venda de produtos, bens e serviços através de linhas de apoio ao cliente e serviços de fornecimento, utilizando plataformas digitais, telefone, e-mail e chat. Trata-se de uma das formas de trabalho mais recorrente, mas também mais susceptível de contornos de vulnerabilidade física e mental.

Neste cenário de exploração laboral, no qual a maioria dos colaboradores, que não se reconhece na classe trabalhadora, encontra-se socialmente desprotegida, quer no trabalho, quer no desemprego. No sector dos call centers, a escassez da lei laboral específica do sector não permite sequer que a profissão de teleoperador seja reconhecida pela Classificação Nacional de Profissões, nem como profissão de desgaste rápido pelo governo.

Com a pandemia covid-19, e a facilidade de transmissão do vírus, estes locais de trabalho amplamente frequentados por uma massa laboral volátil (turnover) tornaram-se focos de contágio. Os materiais de trabalho, como o rato, cadeira, mesa, teclado computador, e auscultador, são geralmente partilhados por todos os operadores. Os materiais de limpeza são escassos, como é o caso dos produtos de desinfecção, detergentes, álcool gel e papel higiénico. Inclusivamente, num call center da região norte de Portugal, o pessoal da limpeza foi obrigado a utilizar apenas água para desinfecção do edifício.

É de salientar que estas empresas tentam frequentemente contornar e/ou omitir quaisquer situações de risco para a Autoridade para as Condições de Trabalho e Direcção-Geral da Saúde. Toda esta parafernália insalubre consequente da covid-19 não foi excepção. Os trabalhadores recentemente regressados do estrangeiro, nomeadamente dos países onde a pandemia estava mais difundida, não foram sujeitos a quaisquer procedimentos de quarentena ou isolamento. Como tal, esta situação conduziu a um estado de revolta generalizado, manifesto num elevado número de faltas ao trabalho, solicitação de pedidos de baixa médica e férias. Noutros casos, verificou-se a recusa em “logar” no próprio local de trabalho, reivindicando a transição imediata para teletrabalho.

Todos estes factos foram denunciados pelos operadores, sobretudo ao sindicato específico do sector - Sindicato dos Trabalhadores de Call Center (STCC) – tendo o mesmo reportado aos diferentes grupos parlamentares e solicitado à Direcção-Geral da Saúde (DGS) e à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) que procedessem a inspecções sanitárias. Além disso, o STCC convocou uma greve nacional, organizada através das redes sociais, e que decorreu entre 24 de Março e 5 de Abril de 2020. Foi igualmente lançada uma petição online - Calamidade Pública - que contemplava os serviços partilhados que operam em open spaces, visando a transição imediata para teletrabalho no que refere aos serviços não essenciais ao público, sem perda de remuneração. Segundo o DL 10-A/202, o trabalho realizado em call contact centers compreende em si todas as possibilidades de transição para o regime de teletrabalho. Como tal, essa mesma situação deveria ter sido operacionalizada de imediato desde o decretar do estado de emergência.

Segundo Danilo Moreira, Presidente do STCC, os resultados da greve foram bastante positivos para a maioria dos trabalhadores, ainda que a transição para o teletrabalho não tivesse sido transversal e tenha sido efectuada sem a disponibilização total de meios técnicos e materiais. De facto, alguns trabalhadores sentiram-se compelidos a exigir às empresas a entrega de cadeiras e mesas, ou até da própria instalação de internet em suas casas. Permanecem igualmente questões relacionadas com os gastos inerentes ao trabalhador, assim como a imposição “orwelliana” por parte de algumas empresas na colocação de uma webcam em casa do mesmo para controlo do desempenho laboral. Noutros casos, determinadas empresas optaram pela lógica inerente ao regime de produção neotaylorista, ou seja, pelo layoff, com a dispensa de trabalhadores que se encontrassem em formação, através do envio de cartas de despedimento a operadores com contratos semanais ou mensais e que receberam a caducidade dos mesmos via carta, ainda que tivessem sido colocados em teletrabalho.

Portanto, a exploração laboral em contexto neoliberal constitui-se como uma verdadeira pandemia transversal a todos os sectores profissionais, quer através da vulnerabilidade humana, consequente das deficientes condições de higiene e segurança, quer através da vulnerabilidade social, resultante da constante, flexibilidade, instabilidade e individualização laboral. Como refere Boaventura de Sousa Santos, o trabalhador opta por ficar em casa, sujeitando-se à perda parcial da sua remuneração ou do próprio emprego, ou expõe-se ao perigo da contaminação para sobreviver. Poderá ser esta a nova pandemia laboral que assolará a economia digital, num mundo cada vez mais susceptível a crises sanitárias, e à destruição da natureza e do próprio trabalhador?


 
 
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