Nas duas décadas deste século, e sobretudo depois de a austeridade ter desabado sobre nós, Portugal teve a maior convulsão territorial da nossa contemporaneidade. Refiro-me a uma alteração profunda das relações entre as regiões, cujas evoluções se tornaram assimétricas e contrastantes como nunca foram. Isso resultou de algo muito preciso: uma forma de crescimento unipolar, apenas centrado na Área Metropolitana de Lisboa (AML), com definhamento de todos os outros espaços, sejam eles urbanos, rurais, litorais ou interiores.
A consequência mais significativa de tudo isto foi o que se passou com as cidades médias, que generalizadamente regrediram em termos demográficos, deixando-nos sem um sistema urbano nacional capaz. Inversamente, assistiu-se ao crescimento demográfico explosivo das periferias da região lisboeta. Exemplifico, usando as estatísticas demográficas do INE e as suas estimativas mais recentes. Entre 2001 e 2018, a AML cresceu 6,3%, enquanto no Norte, no Centro e no Alentejo se registaram variações de -1,3%, -5,7% e -9,1%. O Algarve teve também uma variação positiva, mas isso já não aconteceu entre 2011 e 2018. Há sete concelhos da AML com variações superiores a 18% (nalguns superiores a 30% e a 40%!). Em quase 140 dos 278 concelhos do Continente as variações foram entre -10% e -40%.
Com estas tendências, a possibilidade do surgimento de crises territoriais relevantes era bastante plausível, mesmo que continuássemos sob tão pesada “normalidade”. Isso podia acontecer em territórios crescentemente deslaçados do país, onde a noção de abandono se tornava legítima. Assim como podia acontecer onde se foi concentrando uma certa forma de opulência, conjugada com precarização, uso intensivo do trabalho pouco qualificado e abuso do ambiente, segundo um modelo económico que tinha o turismo low cost e o imobiliário como pedras angulares. Bastava que algo se passasse... E algo se passou, mesmo que tenha sido imprevisível. Agora, só tem interesse falar do caminho que se fez para termos consciência de onde estamos. E estamos mal.
Seremos nós capazes de redescobrir o país inteiro e de nos organizarmos internamente noutra base, mais saudável? Vamos dar atenção às cidades médias, aos pequenos meios, às regiões, aos diferentes territórios, em vez de apenas lhes escoarmos as respetivas populações? Vamos reequilibrar o país e desfazer um quadro explosivo? Adianto já: creio que só ganharemos essa capacidade se em cada espaço cuidarmos das respetivas economias – indústria, agricultura, serviços públicos, habitação, formas diversas de assegurar localmente bem-estar. Se tivermos uma ideia para cada um deles, à escala apropriada – isto é, se pensarmos em termos de desenvolvimento e não em termos assistencialistas. Se o fizermos, esse será um ganho geral, pois é o próprio país que precisa de recompor as suas capacidades produtivas, de desenvolver as atividades que sirvam a comunidade e quebrem dependências, parando a obsessão de orientar a economia para servir a procura externa, mesmo que ela nos desqualifique e nos tenha levado a fragmentar a indústria, a depender de importações, a prestar serviços baratos e a ameaçar a provisão pública. Ora, isso alcança-se no território, com as suas capacidades e, sobretudo, dando uma base material digna à vida das pessoas. O território, o país inteiro, é o primeiro plano da nossa soberania, da capacidade para nos organizarmos. E temo-lo desperdiçado.
A ideia de que o território é uma variável essencial de uma boa organização coletiva sempre teve os defensores obstinados (conto-me entre eles). E estes sabem, ao contrário dos que têm respostas apressadas, que uma visão territorial é, por natureza, multiescalar: é local, é regional, é urbana e é rural, é nacional e até pode ser transfronteiriça e, portanto, internacional. Não cai em simplismos como a redução da coesão territorial a uma vaga noção de relação paternalista com o “interior”, como tem acontecido entre nós. Ou a ideia de que a territórios frágeis se “dá” umas coisas de carater geral, pois não vale a pena insistir neles, visto que têm pouco para devolver. O território é uma condição de coerência do modelo de desenvolvimento com a sociedade que o sustenta. Estamos agora no tempo de todos compreendermos que o desafio é recolocar a economia em relação com a comunidade que deve servir. E com a finalidade da vida. Desglobalizar, quebrar dependências, centrar a economia no país, naquilo que nos salva, como a saúde, a ciência, os abastecimentos, com as infraestruturas que os possibilitam e as redes que os garantem. “Retornar à produção nacional e à nossa reindustrialização”, como dizia no PÚBLICO de 18 de abril um empresário clarividente e justo. Ora, não há recentramento no país se não houver vitalidade territorial e articulação regional.
Entendamo-nos: precisamos de um sistema urbano revigorado assente em cidades médias com as respetivas economias reativadas. Dou só os dois exemplos mais fáceis: em Trás-os-Montes, de Chaves a Vila Real e à Régua, ou no Centro interior, da Guarda a Castelo Branco, passando pela Covilhã e pelo Fundão, há uma população urbana significativa, economias que resistem, ensino superior, serviços públicos que ainda não definharam por inteiro e pequenos meios rurais que dependem mais destas proximidades do que de políticas abstratas. E, mesmo assim, estes territórios perderam mais de 14% da sua população. Convido os leitores a prolongarem este exercício. E acrescento dois pontos. Não devia ser possível, num país que cuidasse de si, que a única cidade do continente que, no litoral e em relação com o interior, podia ter um papel de reequilíbrio entre as duas áreas metropolitanas e tem mais de 100 mil habitantes, Coimbra, tivesse regredido demograficamente 9,8% em 20 anos (um comportamento igual ao do Alentejo). E acontece que todas as cidades médias que por vezes julgamos dinâmicas entraram em perda. Assim como causa perplexidade que, mesmo num quadro de desenvolvimento como o que temos tido, a própria Área Metropolitana do Porto tenha perdido 2,1% da sua população entre 2011 e 2018, com a velha urbe industrial a dar nas vistas como uma cidade da Ryanair. Vai continuar a ser assim?
Não pode continuar a sê-lo. Se for, é porque não seremos capazes de ter política industrial ou agrícola nem seremos capazes de ter a capacidade de recriar um mercado do trabalho robusto e justo ou de refazer a vida das famílias. Confio que não seja assim, tal a urgência de fazer diferente. Será que nos reterritorializaremos, como sugeria aqui José Gil, mesmo que mais prosaicamente? Se não conseguirmos isto, é porque, depois de termos desperdiçado o território, desistimos do país.