A decisão da AR de realizar a habitual sessão comemorativa da Revolução de Abril parece estar a incomodar alguns setores da sociedade portuguesa, e há até quem considere isso “uma vergonha”. Haverá com certeza muitos portugueses a subscrever a petição que corre na internet (a exigir o cancelamento da sessão) movidos por boas intenções, por verem na celebração uma contradição entre o que se impõe ao cidadão comum e a evocação que os deputados decidiram promover no Parlamento. Não devemos concluir, portanto, que os subscritores sejam todos contra o 25 de Abril enquanto data simbólica que nos devolveu as liberdades políticas. Porém, é preciso colocar a questão no seu devido contexto. Desde logo, deve recordar-se que esta opção foi decidida na Assembleia da República pelos líderes partidários e onde se acertaram as condicionantes dessa celebração atendendo ao momento particular que vivemos. Houve uma quase unanimidade na decisão favorável à celebração no formato proposto, à exceção de dois partidos, o CDS e o Chega.
Ser-se contra a celebração da Revolução dos Cravos na AR no quadro do atual cenário de pandemia pode até ser uma atitude aceitável por parte do cidadão comum e pouco politizado. Mas neste tipo de matéria não há coincidências. Não será por acaso que apenas a direita (a democrática, com o CDS) e o populismo de extrema-direita são abertamente contra. De resto, o Chega, na opinião do seu “demissionário” líder, apressou-se logo a proclamar, na sua já habitual vulgata radical, que se opõe a “festas, palhaçadas e fantochadas”. Como disse uma figura histórica cujo nome prefiro omitir, “em política, o que parece é”. Efetivamente, são conhecidas as posições da nova direita salvífica e duvido que seja coincidência o facto de, na versão inicial do texto da petição online, ter sido trocada a data de 25 para 24 de abril.
Na verdade, os saudosistas dos tempos do Estado Novo andam por aí, e ainda sonham que podem fazer o tempo voltar atrás. Em muitos casos, a sua mentalidade vingativa e conservadora parece ter parado no dia 24 de abril de 1974. A julgar pela linguagem que transparece nos comentários de muitos dos subscritores, por exemplo a ajuizar que “o 25 de Abril substituiu uma ditadura por outra”, a exaltar como data de celebração o 25 de novembro, não por esse ter sido (também) um momento de consolidação da democracia, mas sim um ato vingativo contra o 25 de Abril (neste ponto em sintonia com alguma esquerda, o que também é de lamentar). Alguns dos peticionistas fazem referências à “abrilada”, num vernáculo desprezível, alegando que o 25 de Abril só serviu os que ali são apelidados de “escória”, ou seja, quem governa o país democraticamente desde há 46 anos. A linguagem rasca e ofensiva com que são apelidados altos representantes do Estado de direito exige uma resposta firme dos democratas e do campo da esquerda, pelo menos no plano político.
É certo que estamos a viver tempos extraordinários e num confinamento forçado que os portugueses têm na generalidade cumprido. Acresce que a enorme união que tem sido revelada entre a generalidade dos cidadãos e as instituições democráticas no combate à covid-19 é a prova de que vivemos numa democracia madura, apontada aliás como exemplo por muitos observadores internacionais. É a prova de que o Serviço Nacional de Saúde funciona, de que o Estado social é capaz de atuar com largo índice de sucesso na mitigação da pandemia e na poupança de vidas, graças à resposta atempada das instituições e à dedicação dos profissionais de saúde e não devido à tantas vezes alegada “eficácia” dos privados. De resto, como se tem visto, a “ajuda” destes resulta em mais despesa pública que todos iremos ter de pagar. Os que não olham a meios para atingir os fins, os que fazem política bramando contra os políticos, os que vestem a pele de cordeiro para disfarçar os seus desígnios, são em geral falsos impolutos, prontos a compensar mais tarde quem nos bastidores financia a sua prosápia.
Sabemos bem que os conflitos de interesses não vão acabar e que os combates políticos que aí vêm terão um desfecho muito incerto. Do meu ponto de vista, e perspetivando a situação enquanto europeu e português, nesta altura até Emmanuel Macron – atendendo às suas declarações na recente entrevista ao Financial Times – já estará certamente a ser apelidado pela direita populista de perigoso socialista. Bastará olhar para o papel ridículo de lideranças de outros continentes para se concluir que, por muito problemático que seja o futuro da UE, por muito absurda e egoísta que seja a posição de líderes como Mark Rutte e outros (cada vez menos convictos, diga-se), basta atentar nas notícias que nos chegam diariamente dos EUA ou do Brasil (sem esquecer a anedota que é nesta altura a liderança da Nicarágua) para entendermos as divisões instaladas e identificarmos quem está do lado certo e do lado errado da história (pelo menos do ponto de vista da defesa dos direitos humanos e do progresso social).
Estas correntes de opinião dos que em Portugal se opõem à celebração do aniversário do 25 de Abril situam-se no mesmo alinhamento daqueles que no Brasil aclamam Bolsonaro no seu diagnóstico de que a covid-19 não passa de uma “gripezinha” e dos americanos que, guiados por Donald Trump, estão a exigir na rua o fim do confinamento e a retoma imediata da economia. O populismo não tem norte nem valores, só se guia pelo desígnio do poder e do protagonismo. Em geral, muda de discurso conforme sopra o vento. Ora exigindo o estado de emergência, ora duvidando e abstendo-se, ora sendo abertamente contra: se as esquerdas não o querem, então sou a favor; se as esquerdas e os democratas em geral o aceitam, então sou contra; se se programa uma sessão com um número reduzido de deputados, não, não quero.
O objetivo estratégico destes radicais de direita orienta-se por referências claras, que estão nos antípodas da ética democrática: a defesa da “ordem”, o discurso da “limpeza”, o desejo de pôr fim a esta “vergonha”, e isso diz tudo acerca do que está nas reais intenções destes indignados. É claro que a indignação é contra o 25 de Abril. Efetivamente, os apoiantes radicalizados dos movimentos da direita populista, seja em Portugal, na Alemanha ou no Brasil, movem-se não pela razão científica, não pelo conhecimento histórico, não por um programa político claro, mas tão só se deixam levar por figuras cujas vozes amplificam os seus preconceitos e prometem a redenção dos seus ressentimentos recalcados.
Se o estado de emergência constitui uma limitação dos nossos direitos de cidadania, seria particularmente grave se a sua extensão fosse levada a um ponto em que a exceção passasse a ser a normalidade. Todos lamentamos a gravidade e dramatismo da situação que temos vivido desde há cerca de um mês, e todas as mortes nos atingem a alma violentamente. Mas apesar das estatísticas serem o que são, Portugal tem lidado o melhor possível com a calamidade, sendo apontado como um caso de eficiência. E não deixa de ser motivo de orgulho que as principais forças políticas e instituições tenham falado a uma só voz. Inclusive na defesa clara dos valores e do espírito do 25 de Abril.
A democracia pode ter sido mitigada porque de algum modo estamos sitiados em casa, mas não foi suspensa, como disse desde início o Presidente da República. Lembrar o 25 de Abril de 1974 não é o mesmo que fazer uma “festa” ou uma “farra”, como supõem algumas mentes “borguistas” habituadas a excessos vazios de valores. É também fazer jus ao Estado social e ao SNS que construímos, com todas as suas imperfeições, e que se deve ao 25 de Abril. Com as precauções necessárias, a sessão solene do próximo dia 25 na AR não é vergonha nenhuma. Pelo contrário, é a demonstração de que, após esta interrupção e este sacrifício coletivo, a democracia portuguesa sairá mais forte. Nunca será demais honrar os heróis de Abril!