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26-04-2020        Diário do Minho

As precariedades laborais com que hoje nos deparamos têm inequívocas expressões de novidade inerentes à evolução das formas de organização e prestação do trabalho, quanto aos impactos sobre a vida dos trabalhadores e igualmente sobre o funcionamento da sociedade. Contudo, concetualmente e enquanto instrumentos para aprofundar a exploração, elas constituem-se como velharias inerentes às relações sociais e de vida em que o sistema capitalista assenta e suas dimensões económica, social, política, ético-cultural, científico-técnica e os poderes simbólicos que foi conquistando.

A crescente transversalidade de vínculos laborais precários, atingindo cada vez mais setores e trabalhadores com todo o tipo de qualificações, tem influenciado a conceção de que podemos olhar para o conjunto dos trabalhadores precários como uma espécie de classe – o precariado – que para alguns autores substitui o lugar do proletariado, ou da classe operária, no processo de transformação social do modo de produção capitalista. Trata-se a meu ver de uma simplificação exagerada e perigosa, pois o precariado não é um sujeito social novo, não é uma categoria homogénea e não tem uma fronteira definida, é sim a expressão geral do processo de precarização, sem dúvida cada vez mais transversal e globalizado.

A condição de precário abrange cada vez mais trabalhadores de diferentes qualificações, que, por causas que procurarei aflorar, vão sendo expostos às mutações do trabalho e sua desregulação, como defende o sociólogo/deputado José Soeiro, sendo que essa condição é um estado tendencialmente permanente. Não me parece ser possível confirmar, como defende o economista inglês Guy Standing desde 2011, que o “precariado” seja, de certa forma, uma nova classe em formação, tendo emergido por efeitos da passagem do capitalismo industrial para o capitalismo neoliberal afirmado à escala global. Sou quase tentado a afirmar que, se os trabalhadores precários constituíssem uma categoria homogénea, estaríamos às portas de uma revolução universal, independentemente das formas que esta pudesse assumir.

As inseguranças e instabilidades no trabalho foram generalizadas e quase absolutas no mundo do trabalho. Elas resultavam da inexistência de regulação e persistiram muito tempo. Imperou a barbárie no trabalho durante séculos. Só começou a ser fortemente posta em causa com a organização coletiva dos trabalhadores, a criação dos sindicatos e a ação desenvolvida por estes a partir do final da primeira metade do século XIX. Aí, iniciou-se o caminho de uma emancipação social muito difícil, lenta e penosa, num processo não plenamente universal nem simultâneo (ainda hoje), mas que, em particular depois da II guerra Mundial, gerou dinâmicas extraordinárias de harmonização no progresso, de estabilidade e segurança, propiciando aos povos saltos qualitativos nos seus processos de desenvolvimento.  

A criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, no rescaldo da I guerra mundial, foi impulsionada por três fatores fundamentais: i) a constatação e revolta de muita gente (incluindo empresários progressistas) face às injustiças e à exploração chocante do trabalho, que já se tinha refletido, por exemplo, na publicação da encíclica Rerum Novarum em 1891; ii) a constatação de que essa exploração era uma causa fundamental da emergência das guerras, logo uma ameaça à paz; iii) que a Revolução Russa (1917) demonstrava que se não houvesse resposta a reivindicações fundamentais dos trabalhadores outras revoluções do mesmo tipo eclodiriam.

A Declaração de Filadélfia (OIT) veio proclamar que “O trabalho não é uma mercadoria” e, de seguida, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, consagrou os Direitos do Trabalho exatamente como Direitos Humanos. Entretanto, a evolução dos objetivos programáticos da OIT - cuja composição é tripartida como melhor forma de consagrar consensos reformistas, responsabilizando governos, trabalhadores e patrões - foi assumindo o objetivo do Trabalho Digno para todos. Trabalho digno significa, desde logo, trabalho regulado em todas as formas em que é prestado e ninguém à margem de sistemas de segurança e proteção social dignos, que os Estados têm a responsabilidade de assegurar.

A proliferação das precariedades teve no neoliberalismo um impulsionador fortíssimo a partir dos anos setenta do século passado, nas escalas locais, regionais e globais. O tripé sustentador da conquista da dignidade no trabalho – a liberdade de organização e representação sindical e patronal efetivas e responsabilizadoras; o Direito do Trabalho enquanto ramo específico do Direito assente no reconhecimento de que o patrão e o trabalhador, individualmente considerado, não se encontram em pé de igualdade na negociação das condições de trabalho; a existência e efetivação da negociação coletiva – é permanentemente posto em causa, ou mesmo destruído, em nome da superioridade das regras dos mercados, da inevitabilidade da financeirização da economia e do trabalho, da supremacia da “competitividade”, do endeusamento do lucro, do individualismo exacerbado (que encurrala as pessoas para as responsabilizar pelos seus fracassos) e da sua combinação explosiva com o consumismo.

O processo de terciarização, as alterações na estruturação e organização da economia e das empresas/sociedades e das relações com fornecedores e clientes, o avanço técnico e científico, a revolução comunicacional ou as mobilidades crescentes e impactos diversos da globalização, para enunciar apenas alguns grandes campos de mudança, alteraram formas de organização e prestação de trabalho, mas elas não têm intrinsecamente determinismos que impusessem precariedades. Estas foram geradas por escolhas dos poderes político e económico - num quadro de relações de poder que vai atrofiando perigosamente a democracia - para: a) aumentar e concentrar cada vez mais os lucros através da redução de salários e dos direitos dos trabalhadores; b) forçar caminho de retorno a desregulações e desregulamentações do trabalho (por isso é que as designo de velharias); c) enfraquecer o poder dos trabalhadores e das suas organizações. Na atualidade vemos esses propósitos bem evidenciados nas práticas das plataformas digitais e outras, na atuação de grandes grupos nacionais e multinacionais, ou nos determinismos tecnológicos com que são apresentados possíveis impactos da digitalização, da robotização, da inteligência artificial. Alguns desafios quase mágicos que estas extraordinárias transformações nos colocam são apresentados, propositadamente, como apocalíticos para que os trabalhadores e os povos aceitem submeter-se ao desemprego ou a trabalho desprotegido. Há um processo de crescente fragmentação do trabalho e a “descoberta” contínua de conjuntos de trabalhadores, em qualquer parte do mundo, em condições de serem mais explorados, alimentando assim uma espiral regressiva de harmonização no retrocesso.

Quando analisamos a precariedade laboral no nosso país, e em muitos outros, vemos que foi imposta primeiro a trabalhadores em situação frágil, em regra pouco qualificados. Depois foi-se tornando crescentemente transversal e surgiram as novas praças de jorna. As empresas “fornecedoras de mão de obra” e de trabalho temporário disponibilizam, por baixos salários e escassos direitos, trabalhadores pouco qualificados, mas também jovens com formação superior que a matriz de desenvolvimento que o país segue não integra e são empurrados para cal center, ou para atendimentos diversos. Mas também disponibilizam médicos, enfermeiros, professores ou outros trabalhadores altamente qualificados, entretanto caídos nessa teia da precariedade que os aprisiona em resultado da falta de emprego (desemprego) e de múltiplos mecanismos de exploração como menciona o sociólogo brasileiro Ruy Braga. Teia em que também encontramos alguns milhares de mulheres e homens de duas gerações de investigadores e cientistas, exemplo de grandes competências que conquistamos nas últimas décadas e que mereciam ser valorizados. Que racionalidade, que fundamentação científica tem tudo isto?  

Neste tempo de combate aos impactos da pandemia (Covid 19) - tempo de crise - o teletrabalho teve um impulso forçado e muito útil, que está a mostrar potencialidades ao mesmo tempo que evidencia limites e perigos de poder vir a infernalizar a vida de muitos(as) utilizadores(as). Mas, já está em marcha uma forte tentativa de o generalizar sem a necessária regulação.

A “economia que mata”, que o Papa Francisco tão bem tem identificado e analisado em diversas intervenções públicas, documentos e encíclicas, alimenta-se, em grande parte, do aniquilamento dos direitos do trabalho. Este é menorizado, num processo que o sociólogo António Casimiro Ferreira tem mencionado como “uma forma de acantonar o lugar que o trabalho tem na vida das pessoas e das sociedades”, colocando, por exemplo o consumo, com a mesma ou até maior importância estrutural na vida das pessoas, que aquela que tem o trabalho. O fácil acesso ao crédito foi e é, muitas vezes, instrumento ilusório de rendimento, uma ratoeira que esconde o baixo valor do salário.

Os tempos difíceis que estamos a atravessar expuseram de forma inquietante as desigualdades entre as pessoas, os povos e os Estados e evidenciam-nos um passado carregado de contradições, vulnerabilidades, riscos, injustiças, precariedades e desvalorização gritante de muito trabalho humano, absolutamente indispensável.  A situação é de emergência porque ninguém sozinho, nenhuma família, nenhuma empresa, nenhuma organização está por si só em condições de responder aos desafios perante os quais somos colocados, mas os primeiros a serem sacrificados são os mais vulneráveis, os precários. Que solidariedade é esta?

O trabalho dos precários, trabalhadores por conta de outrem ou por conta própria, surge-nos tão importante e necessário como o de todos os outros, porém são os precários os primeiros sacrificados.  Ninguém sozinho, nenhuma família, nenhuma empresa, nenhuma organização está por si só em condições de responder aos desafios perante os quais somos colocados, mas antes de os indivíduos que se têm apropriado da riqueza produzida serem efetivamente atingidos nos seus interesses, a generalidade dos trabalhadores e de muitos pequenos empresários (que também todos os dias estão sujeitos a inseguranças e instabilidades) hão de ser chamados a pagar pesadas faturas. Que solidariedade é esta?

A crise grita-nos às consciências a centralidade do trabalho. O trabalho, individual e coletivo, feito com lealdade e dignidade, como o da generalidade dos trabalhadores portugueses mesmo quando ele é perigoso e mal pago, é imprescindível e tem de ser valorizado.  Uma economia que produza mais aquilo de que precisamos e que cuide das pessoas, das suas necessidades, dos seus direitos fundamentais servindo a nossa saúde, o ensino e a formação, a justiça, a proteção social, a mobilidade das pessoas exige emprego estabilizado, mais qualificado e motivado.

As precariedades atingem a dignidade das pessoas, anulam a sua soberania sobre o tempo que lhes pertence para organizarem a sua vida e a família a que têm direito, são expressão e alimento de assimetrias. Aumentam o conforto egoísta e a ganância de alguns, mas colocam a maioria dos trabalhadores e dos seres humanos em permanente instabilidade e anormalidade, impedindo o desenvolvimento humano.

Não fiquemos à espera de sermos todos precários para agir.

 


 
 
pessoas
Manuel Carvalho da Silva



 
temas
trabalho    economia    precariedade