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20-04-2020        Público

1. Como em todas as crises a situação actual tem o potencial de revelar o pior e o melhor que há em cada sociedade e em cada existência individual. E este primeiro mês de pandemia revelou ambos em toda a sua extensão. Desde logo na linguagem usada para falar da crise.

Falemos do pior. O espaço público foi capturado em pouco tempo pela metáfora guerreira do poder: isto é uma guerra que temos de ganhar, disseram. Seguiram-se as mais diversas declinações do tema bélico: os médicos e enfermeiros seriam os soldados da linha da frente, os infectados a quinta coluna, que seria necessário isolar e neutralizar, os mortos os efeitos colaterais, e a crise económica que se antevê precisaria de uma resposta típica de uma economia de guerra, com grandes restrições e austeridade

Falemos do melhor. Outros, nos quais me incluo, explicaram que isto não é uma guerra. Não há nações contra nações, soldados contra soldados, uma luta de morte de uns contra os outros. Numa guerra a primeira vítima é a verdade. Na pandemia, o primeiro instrumento é a informação e a partilha alargada de conhecimento, quer entre a comunidade científica global quer no espaço público. Numa guerra os recursos são todos canalizados para o esforço de guerra, numa pandemia os recursos deveriam ser maioritariamente orientados para o esforço de cuidar, salvar vidas e garantir a educação para todos como base do conhecimento presente e futuro.

2. Consideram alguns que a metáfora bélica foi apenas uma figura de estilo, um exagero metafórico sem consequências. Discordo.

A metáfora é como um magneto quer na política, na administração, na ciência ou na vida de todos os dias. As metáforas sempre tiveram um papel na construção das políticas públicas de educação e saúde. Permitem a articulação não planeada de discursos inicialmente dispersos e provenientes de campos políticos, ideológicos e científicos muitas vezes contraditórios e até opostos. Os jogos de linguagem garantidos pelas metáforas não se articulam por causa de, nem com a finalidade de, mas porque representam em cada momento os recursos escassos que estão à disposição dos jogadores. Neste sentido, os jogos de linguagem não são simétricos. Os actores que os produzem têm poderes diferentes, capacidade diferente de os veicular, modos diferentes de tornar esta ou aquela metáfora dominante no espaço público, tornando-a hegemónica.

Vejamos duas consequências imediatas da hegemonia da metáfora bélica no espaço público: a declaração do estado de emergência e as propostas de uma “economia de guerra”.

A metáfora bélica permitiu preparar a mentalidade necessária a medidas como o estado de emergência, a necessidade de submissão a um comando único, a limitação das críticas e dos ataques a quem está no comando da crise, a unidade nacional, a aceitação dos danos colaterais, a necessidade da excepção da excepcionalidade.

O estado de emergência teve apoios inesperados, da esquerda à direita, também por força da “situação excepcional comparável a uma guerra”. E teve o apoio da maioria da população capturada pelo medo provocado pela ressonância da guerra. A decisão desnecessária, que alguns chegaram a justificar como meio de impedir despedimentos selvagens, que não foram impedidos, de mobilizar recursos privados para a “linha da frente”, que não foram até agora usados, teve como móbil principal antecipar situações presentes e futuras em que os efeitos sociais assimétricos da pandemia se fizessem sentir de tal modo que as greves e a rebelião espontânea fossem inevitáveis.

Foi sempre esse o sentido do estado de emergência: garantir a presença efectiva e visível de um poder desigual no espaço público, que garantisse a submissão dos que sofrem as consequências de políticas de guerra que não podem questionar a não ser de forma mitigada.

Como seria de esperar, a metáfora bélica capturou toda a acção política e houve mesmo quem pedisse para a situação ser tratada como “guerra biológica” e que fossem incorporados “quadros militares no comando das unidades de saúde”. Projecto que não foi concretizado mas que nos anuncia intenções de actores políticos que no futuro poderão substituir os actuais.

Quando a crise sanitária for controlada vai cair-nos em cima a crise económica e financeira de proporções muito superiores à de 2010. Nessa ocasião a metáfora vai escalar para a “economia de guerra” e quem hegemonizou a metáfora no período da “guerra biológica” estará em melhores condições para usar todos os meios excepcionais para debelar a crise económica e financeira. Entretanto, o estado de excepção já terá sido normalizado na fase da “guerra biológica”, a memória sistémica já a terá integrado como solução possível em casos excepcionais. Ora se alguma coisa toda a gente já percebeu é que o que se seguirá será muito mais duradoiro e excepcional do que a situação actual.

A “economia de guerra” que alguns anunciam já para o futuro pós-pandemia é também a proposta de uma “educação de guerra” e de uma “saúde de guerra” em que faltarão recursos para estes dois pilares do estado social. Ora isto não é uma guerra, é uma situação de catástrofe sanitária que exige uma economia solidária e uma educação solidária. Guerra significa um jogo mortal de soma nula em que uns ganham aquilo que os outros perdem, quando o que deveria estar em jogo numa pandemia seria a criação de condições para que todos saíssem a ganhar, ou melhor, que todos perdessem apenas na medida das suas condições sociais e dos seus recursos de partida. E isso não se assemelha a uma economia de guerra, mas antes a uma economia do cuidar, porque trata de problemas de equidade.

3. O pior e o melhor que há em cada sociedade e em cada um de nós não é sobretudo um problema de escolhas morais. A questão que se coloca em cada sociedade é se tem as condições estruturais para uma política de cuidado e solidariedade, ambas exigindo pôr à frente de tudo a igualdade e equidade de acesso e de uso dos bens mais importantes num momento de crise, como é o caso dos bens de primeira necessidade, da saúde e da educação. Vejamos o caso da educação.

O funcionamento excepcional da vida escolar não pode justificar que alguns fiquem para trás. Não podem ser efeitos colaterais. Numa guerra tudo é justificável, vencem os mais fortes e com mais recursos. Em educação é preciso discriminar positivamente os que menos recursos económicos e educativos familiares têm. E esse é o papel equilibrador que nem sempre o estado educador tem conseguido cumprir, mas que devemos prosseguir.

Em que campos é que os pratos da balança se desequilibraram mais do que é habitual nestas duas semanas de interrupção da vida escolar, e que se podem acentuar no futuro se não forem tomadas medidas correctivas? Na desigualdade nos meios de acesso ao prosseguimento das aprendizagens: o ensino à distância, o desigual acesso a computadores e internet, a literacia digital que não fora democratizada no passado, transformaram-se neste curto período em barreiras intransponíveis para o acesso à educação.

Na desigualdade provocada pelas “pedagogias invisíveis” no tratamento dos conteúdos escolares: as famílias com mais escolaridade acumulada conseguem acompanhar directa ou indirectamente os novos conteúdos; as famílias pouco escolarizadas não o conseguem fazer. Na desigualdade nos processos avaliativos: a utilização de meios avaliativos que valorizam os conhecimentos dos alunos incorporados no seu capital cultural familiar discrimina os que não lhe têm acesso.

Em qualquer destas áreas é imprescindível actuar com os mesmos princípios de cuidado, igualdade e solidariedade que os médicos e enfermeiros usam ao cuidar dos que recorrem aos serviços do sistema nacional de saúde.


 
 
pessoas
Rui Gomes



 
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aprendizagem    estudantes    ensino    educação