A ideia de crise no mundo do trabalho (seja em situações de emergência financeira, seja em contextos de maior desafogo orçamental) é recorrente. Num projeto de investigação que coordenei no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra entre 2016 e 2019, intitulado Rebuilding trade union power in the age of austerity: a review of three sectors (REB-UNIONS), uma das preocupações centrais foi analisar os “recursos de poder” sindical à luz dos efeitos causados pelas políticas de austeridade que se abateram sobre a economia e sociedade portuguesas, em especial durante o ciclo político 2011-2015. Aí se revisitaram recursos de poder de vários tipos: estrutural (relacionado com a capacidade de negociação dos trabalhadores no mercado e no processo de trabalho), organizacional (mobilização para a filiação), institucional (capacidade para interferir na via legislativa, seja por processos de conflito, seja de negociação) e societal (assente na construção de coligações e redes na sociedade civil e na valorização de estratégias inovadoras).
Nessa investigação (focada sobretudo no ambiente de três empresas estruturantes na economia portuguesa: Autoeuropa, TAP e PT/Altice) constatou-se que os poderes estrutural e institucional revelaram sinais de maior fraqueza de forma generalizada, explicada em parte pelos efeitos da aplicação do Memorando da Troika ou pelas alterações à legislação laboral (revertidas apenas parcialmente no período pós-austeridade). Por outro lado, e talvez de forma surpreendente, os poderes associativo e societal evidenciaram alguns sinais positivos. Por um lado, a generalidade dos sindicatos estudados apresentou alguma recuperação em termos de filiação (por exemplo entre o segmentos mais precários de trabalhadores e também como resposta a processos de privatização ou em resultado de processos de conflito específicos). Por outro lado, algumas reivindicações sindicais foram legitimadas aos olhos da opinião pública (o caso da “transmissão de estabelecimento” na PT/Altice ou do movimento “Não TAP os olhos” foram apenas dois exemplos).
À escala global, a atual situação de emergência sanitária e de confinamento obrigatório ditada pela covid-19 coloca em suspenso a sociedade como um todo e não apenas o mundo do trabalho. Mas é em grande medida para este que se canalizam muitas das preocupações já vistas em crises anteriores. Por isso vale a pena voltar a questionar aquelas fontes de poder, desde logo porque o desemprego e as ameaças de despedimento coletivo (muitas já consumadas) em empresas de trabalho temporário, em setores como a hotelaria e turismo, etc., assumem contornos dramáticos. E o facto de recorrentemente serem denunciadas situações de trabalhadores que são forçados a trabalhar em condições de insegurança sanitária (como os trabalhadores precários de call centers), ou a aceitar revogações contratuais por mútuo acordo, ou a verem os seus contratos a termo caducados (mesmo nas situações em que as empresas beneficiam de apoios do Estado durante o período de vigência do layoff) é bem demonstrativo da fraqueza do poder estrutural a que acima me referia. Resta saber se o reforço da capacidade inspetiva da Autoridade para as Condições de Trabalho, decretado pelo governo e inscrito na prorrogação do estado de emergência, vai ou não surtir efeito ao ponto de “empoderar” o elo mais fraco da relação laboral.
Mas a covid-19 vai provavelmente confirmar também o enfraquecimento de dois outros poderes potenciais das organizações de trabalhadores. Por um lado, mesmo que seja em momentos de adversidade que o sentido de proteção coletiva mais faz sentido, o desfecho ditado pela quebra de poder estrutural deverá ser acompanhado por uma perda do poder organizacional, não sendo por isso de espantar uma menor captação de sócios (novos filiados). Como em outras crises, o clima de medo e incerteza, em vez de aproximar, induzirá um afastamento dos sindicatos. Por outro lado, o poder institucional está igualmente posto em causa, quer pela suspensão do direito à greve decretada pelo estado de emergência (ainda que tal medida possa afigurar-se legítima aos olhos da opinião pública), quer pela suspensão da audição das organizações sindicais em matéria de elaboração de leis do trabalho.
A covid-19 já está a “forçar” o mundo do trabalho a reinventar-se e a incorporar, com outra regularidade, a linguagem dos métodos digitais. Mas esse potencial contributo para ajudar a superar a iliteracia digital não pode dispensar, como seria de esperar, o cumprimento de regras
Talvez só a quarta forma de poder enunciada anteriormente possa incorporar alguns sinais de esperança (ainda assim contida) para lidar com a presente crise sanitária. Com efeito, subjacente ao poder societal está uma ideia de abertura, de inovação, de viabilização de outros modos de trabalhar e sobretudo de outros espaços de afirmação identitária do trabalho. Embora distanciado do campus por excelência de luta por direitos e formas de bem-estar – o local de trabalho –, e apesar de decretado em muitas situações como obrigatório, o regime de teletrabalho, se bem aplicado, pode funcionar como “receita” para ajudar a combater a pandemia, desde logo porque salvaguarda a distância física entre pessoas, ao mesmo tempo que cria condições para um melhor equilíbrio entre trabalho e vida familiar, reduz despesas relacionadas com a mobilidade para o trabalho, etc.
A covid-19 já está a “forçar” o mundo do trabalho a reinventar-se e a incorporar, com outra regularidade, a linguagem dos métodos digitais. Mas esse potencial contributo para ajudar a superar a iliteracia digital não pode dispensar, como seria de esperar, o cumprimento de regras. Como oportunamente realçava João Leal Amado, a propósito do teletrabalho, as questões do isolamento do trabalhador, do enfraquecimento da dimensão coletiva do trabalho, de intromissões da esfera profissional na vida privada do trabalhador, traduzida numa violação de normas que regulam o horário de trabalho, etc., não podem deixar de ser contempladas pois comportam riscos bem reais.
Ainda que a reinvenção do trabalho e das organizações de trabalhadores seja incontornável, ela não pode valer a qualquer preço. O que significa que tais organizações devem continuar a lutar por mecanismos regulatórios ajustados às novas formas de trabalho da indústria 4.0 (como o crowdwork). Aí se perfilam desafios essenciais, tais como: o reconhecimento da existência de uma relação de emprego subordinada em que a plataforma online funcione como “intermediária” ou como “empregador”; a garantia de uma remuneração decente e condições de trabalho justas; a obrigação legal de garantia de mecanismos de monitorização; etc. É de justiça digital que a relação entre trabalho e tecnologia, intensificada pela covid-19, precisa