Os debates culturais, políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao cotidiano vivido pela grande maioria da população, os cidadãos comuns – “la gente de a pie”, como dizem os hispano-americanos. Em particular, a política, que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem vindo a demitir-se dessa função. Se mantém algum resíduo de mediação, é com as necessidades e aspirações dos mercados, esse mega-cidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu, nem tocou ou cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever. É como se a luz que ele projetasse nos cegasse. De repente, a pandemia irrompe, a luz dos mercados empalidece e da escuridão, com que eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem, emerge uma nova claridade. A claridade pandêmica e as aparições em que ela se traduz. O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos. Estas aparições, ao contrário de outras, são reais e vieram para ficar.
A pandemia é uma alegoria. O sentido literal da pandemia do coronavírus é o medo caótico generalizado e a morte sem fronteiras causados por um inimigo invisível. Mas o que ela exprime está muito para além disso. Eis alguns dos sentidos que nela se exprimem. O invisível todo poderoso tanto pode ser o infinitamente grande (o deus das religiões do livro) como o infinitamente pequeno (o vírus). Em tempos recentes, emergiu um outro ser invisível todo poderoso, nem grande nem pequeno porque disforme: os mercados. Tal como o vírus, é insidioso e imprevisível em suas mutações, e, tal como deus (Santíssima Trindade, encarnações), é uno e múltiplo. Exprime-se no plural mas é singular. Ao contrário de deus, o mercado é onipresente neste mundo e não no mundo do além, e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida não humana). Apesar de onipresentes, todos estes seres invisíveis têm espaços específicos de acolhimento: o vírus, nos corpos; deus, nos templos; os mercados, nas bolsas de valores. Fora desses espaços, o ser humano é um ser sem abrigo transcendental.
Sujeitos a tantos seres imprevisíveis e todo-poderosos, o ser humano e toda a vida não humana de que depende são iminentemente frágeis. Se todos estes seres invisíveis continuarem ativos, a vida humana será, em breve (se o não é já) uma espécie em extinção. Está sujeita a uma ordem escatológica e aproxima-se do fim. A intensa teologia que é tecida à volta dessa escatologia contempla vários níveis de invisibilidade e de imprevisibilidade.
O deus, o vírus e os mercados são as formulações do último reino, o mais invisível e imprevisível, o reino da gloria celestial ou da perdição infernal. Só ascendem a ele os que se salvam, os mais fortes (os mais santos, os mais jovens, os mais ricos). Abaixo desse reino está o reino das causas. É o reino das mediações entre o humano e o não humano. Neste reino, a invisibilidade é menos rarefeita, mas é produzida por luzes intensas que projetam sombras densas sobre esse reino. Este reino é composto por três unicórnios. Sobre o unicórnio escreveu Leonardo da Vinci: “O unicórnio, através da sua intemperança e incapacidade de se dominar, e devido ao deleite que as donzelas lhe proporcionam, esquece a sua ferocidade e selvageria. Ele põe de parte a desconfiança, aproxima-se da donzela sentada e adormece no seu regaço. Assim os caçadores conseguem caçá-lo.” Ou seja, o unicórnio é um todo poderoso, feroz e selvagem que, no entanto, tem um ponto fraco, sucumbe à astúcia de quem o souber identificar.
Desde o século XVII, os três unicórnios são o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São os modos de dominação principais. Para dominarem eficazmente têm de ser, eles próprios, destemperados, ferozes e incapazes de se dominar, como adverte Da Vinci. Apesar de serem onipresentes na vida dos humanos e das sociedades, são invisíveis na sua essência e na essencial articulação entre eles. A invisibilidade decorre de um sentido comum inculcado nos seres humanos pela educação e pela doutrinação permanentes. Esse sentido comum é evidente e é contraditório ao mesmo tempo. Todos os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a igualdade entre inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado). Este sentido comum é antigo e foi debatido por Aristóteles, mas só a partir do século XVII entrou na vida das pessoas comuns, primeiro na Europa e depois em todo o mundo.
Ao contrário do que pensa Da Vinci, a ferocidade destes três unicórnios não assenta apenas na força bruta. Assenta também na astúcia que lhes permite desaparecer quando continuam vivos, ou parecer fracos quando permanecem fortes. A primeira astúcia revela-se em múltiplas artimanhas. Assim, o capitalismo pareceu que tinha desaparecido numa parte do mundo com a vitória da Revolução Russa. Afinal, apenas hibernou no interior da União Soviética e continuou a controlá-la a partir de fora (capitalismo financeiro, contra-insurgência). Hoje em dia, o capitalismo consegue a sua maior vitalidade no seio do seu maior inimigo de sempre, o comunismo, num país que em breve será a primeira economia do mundo, a China. Por sua vez, o colonialismo dissimulou desaparecer com as independências das colônias europeias, mas, de fato, continuou metamorfoseado de neocolonialismo, imperialismo, dependência, racismo, etc. Finalmente, o patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos feministas nas últimas décadas, mas de fato a violência doméstica, a discriminação sexista e o feminicídio não cessam de aumentar. A segunda astúcia consiste em surgirem capitalismo, colonialismo e patriarcado como entidades separadas que nada têm a ver umas com as outras. A verdade é que nenhum destes unicórnios em separado tem poder para dominar. Só os três em conjunto são todo-poderosos. Ou seja, enquanto houver capitalismo, haverá colonialismo e patriarcado.
O terceiro reino é o reino das consequências. É o reino em que os três poderes todo-poderosos mostram a sua verdadeira face. É esta a camada que a grande maioria da população consegue ver, embora com alguma dificuldade. Este reino tem hoje duas paisagens principais onde é mais visível e cruel: a escandalosa concentração de riqueza / extrema desigualdade social; a destruição da vida do planeta / iminente catástrofe ecológica. É ante estas duas paisagens brutais que os três seres todo-poderosos e suas mediações mostram aquilo a que nos conduzem se continuarmos a considerá-los todo-poderosos. Mas serão eles todo-poderosos? ou a sua onipotência é apenas o espelho da induzida incapacidade dos humanos de os combater? Eis a questão.
A realidade à solta e a excepcionalidade da exceção. A pandemia confere à realidade uma liberdade caótica e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente fracassa porque a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar ou escrever sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa linguagem à beira do abismo. Como diria André Gide, é conceber a sociedade contemporânea e a sua cultura dominante em modo de mise en abyme. Os intelectuais são os que mais deviam temer esta situação. Tal como aconteceu com os políticos, os intelectuais também deixaram, em geral, de mediar entre as ideologias e as necessidades e as aspirações dos cidadãos comuns. Mediam entre si, entre as suas pequenas-grandes divergências ideológicas. Escrevem sobre o mundo, mas não com o mundo. São poucos os intelectuais públicos, e também estes não escapam ao abismo destes dias.
A geração que nasceu ou cresceu depois da Segunda Guerra Mundial habituou-se a ter um pensamento excepcional em tempos normais. Perante a crise pandêmica, têm dificuldades em pensar a exceção em tempos excepcionais. O problema é que a prática caótica e fugidia dos dias foge à teorização e exige ser entendida em modo de sub-teorização. Ou seja, como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos impedisse de ler e muito menos de reescrever o que fôssemos registrando na tela ou no papel. Dois exemplos. Logo no irromper da crise pandêmica Giorgio Agamben insurgiu-se contra o perigo da emergência de um Estado de exceção. O Estado, ao tomar medidas de vigilância e de restrição da mobilidade sob o pretexto de combater a pandemia, adquiriria poderes excessivos que poriam em causa a própria democracia. Esta advertência faz sentido e foi premonitória em relação a alguns países, nomeadamente a Hungria. Mas foi escrita num momento em que os cidadãos, tomados de pânico, constatavam que os serviços nacionais de saúde não estavam preparados para combater a pandemia e exigiam que o Estado tomasse medidas eficazes para evitar a propagação do vírus. A reação não se fez esperar e Agamben teve de voltar atrás. Ou seja, a excepcionalidade desta exceção não lhe permitiu pensar que há exceções e exceções e que, em face disso, teremos de distinguir no futuro, não apenas entre Estado democrático e Estado de exceção, mas também entre Estado de exceção democrático e Estado de exceção anti-democrático.
O segundo exemplo diz respeito a Slavoj Zizek que na mesma altura previu que a pandemia apontava para o “comunismo global” como única solução futura. A proposta vinha no seguimento das suas teorias em tempos normais, mas era inteiramente descabida em tempo de exceção excepcional. Também ele teve de voltar atrás. Por muitas razões, tenho defendido que o tempo dos intelectuais de vanguarda acabou. Os intelectuais devem aceitar-se como intelectuais de retaguarda, devem estar atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar. Doutro modo, os cidadãos estarão indefesos perante os únicos que sabem falar a sua linguagem e entender as suas inquietações. Em muitos países esses são os pastores evangélicos conservadores ou os imãs do islamismo radical, apologistas da dominação capitalista, colonialista e patriarcal