Os prolongados tempos de crise económica que atravessamos – em face dos quais milhões de cidadãos se vêem forçados a profundas restrições e a adaptar-se a medidas de austeridade governamentais que se lhes apresentam como legitimadoras da inevitabilidade da crise – são porventura também os mais adequados para testar a capacidade de resposta dos actores sindicais. Tendo precisamente como slogan «Não à austeridade: prioridade aos empregos e ao crescimento», a manifestação convocada para 29 de Setembro pela maior organização sindical europeia, a Confederação Europeia de Sindicatos (CES), traduz o descontentamento não só dos cerca de 60 milhões de trabalhadores europeus representados pela CES em 36 países, como de todos/as os trabalhadores/as que no mundo inteiro vêem de dia para dia esfumar-se os seus «direitos humanos do trabalho».
Para percebermos melhor a importância das manifestações transnacionais convirá atentar nos actores e escalas de conflito, no seu modus operandi e nas suas funções.
Actores e as escalas de conflito
Tratando-se de um «dia europeu de acção»1, não surpreende que seja a CES – sintonizada com o processo de construção europeia – a convocar esta manifestação, ainda que a CES incorpore desde a sua origem uma componente mais institucionalista do que de movimento e seja vista muitas vezes mais como «actor de gabinete» do que como «actor de rua». Ainda ao nível europeu, as Federações Sindicais Europeias («braços armados» da CES por sector) configuram-se também como actores de referência. Mas embora a manifestação em causa seja de âmbito europeu, a sua expressão será descentralizada, ou não fosse a CES também «alimentada» por 82 confederações sindicais nacionais. Ou seja, a jornada europeia de protesto de 29 de Setembro não implicará necessariamente uma romaria de sindicatos a Bruxelas, mas acções em diferentes países europeus. Em Espanha, por exemplo, importantes confederações sindicais nacionais filiadas na CES, a União Geral de trabalhadores (UGT) e as Comissões Operárias (Comisiones Obreras), têm mesmo agendada uma greve geral nacional para essa mesma data. E recorde-se, aliás, que já entre 14 e 16 de 2 Maio do ano passado a CES organizara manifestações semelhantes (em especial em Madrid, Bruxelas, Berlim e Praga), tendo como lema «Combater o desemprego: colocar as pessoas em primeiro lugar». A jornada europeia de protesto desdobrar-se-á, pois, em diferentes jornadas de acção nacionais, sectoriais ou mesmo locais, pretendendo com isso demonstrar que o sindicalismo do presente (abalado por múltiplos factores de crise) deve ser capaz de potenciar a articulação entre diferentes escalas em que ocorrem as suas lutas de resistência. O reforço das interacções transnacionais, mais evidente nas lutas de «chamada global», torna-as certamente mais conhecidas, o que pode condicionar também o número de adeptos em seu redor. Ainda assim, convirá não secundarizar iniciativas de base local e nacional, sobretudo se estas incorporarem potencial emancipatório transnacional. No contexto português, a expressiva manifestação da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) realizada no passado dia 29 de Maio pôs precisamente ao rubro uma parte considerável das preocupações que agora animam a jornada europeia do final de Setembro: os inequívocos «nãos» à redução de salários, ao aumento do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), à perda do poder de compra, à diminuição do subsídio de desemprego, à desregulamentação do mercado de trabalho, à pobreza e exclusão social, etc., dão testemunho disso.
Mobilizações transnacionais em acção
Nos contextos europeu e mundial, o uso de expressões como «greve europeia/mundial» ou «greve geral europeia/mundial» está, com efeito, distante da realidade. O que em parte se explica por um conjunto interligado de factores inibidores da cooperação laboral transnacional: uma forte presença de factores de regulação laboral nacional (regimes jurídicos, salários e condições de trabalho) dificulta uma desnacionalização dos sistemas de relações laborais; uma força de trabalho mundial com baixas ligações (em torno dos 15%) a uma economia política global; uma escassez de recursos financeiros (mais notória em contexto de crise) para potenciar deslocações para um espaço físico comum de protesto (não obstante os voos low-cost poderem funcionar como atenuante ou a Internet poder abrir caminho, em especial para os defensores do e-sindicalismo2, a uma V Internacional Operária!); uma incorporação de lógicas de competição e conflitualidade nos discursos e práticas sindicais transnacionais (é bom não esquecer, por exemplo, que a solidariedade laboral pode ser minada por situações em que a luta por melhores condições salariais num determinado país pode significar a degradação da relação salarial ou mesmo o aumento do desemprego noutro país); os atropelos patronais aos direitos laborais nas empresas multinacionais; a fraqueza dos canais de representação dos interesses laborais no plano transnacional (onde a Organização Internacional do Trabalho [OIT] aparece isolada face à presença de instituições como o Fundo Monetário Internacional [FMI], a Organização Mundial do Comércio [OMC], o Banco Mundial, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico [OCDE], o G8…); etc. 3.
Num contexto geral de escassez de mobilizações, alguns exemplos (porventura mais conhecidos e não exclusivamente europeus) devem ser recordados.
1) A greve europeia da Renault, em 1997, em resultado do anúncio do fecho da fábrica belga de Vilvoorde. Apesar do encerramento da fábrica, o «caso Vilvoorde» reforçou a necessidade de criar formas de contrapoder sindical nas multinacionais, alertando estas para a necessidade de consultarem e informarem a priori os Conselhos de Empresa Europeus das empresas em fase de reestruturação e susceptíveis de reduzir significativamente o número de trabalhadores. Duas decisões do Tribunal de Versalhes (de Maio de 1997) apelaram nesse sentido.
2) A mobilização contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), desencadeada no hemisfério americano desde que, em Dezembro de 1994, a então administração de Bill Clinton se propusera criar, até 2005, uma ampla zona de livre comércio no hemisfério americano, do Alasca à Terra do Fogo. Para o não-sucesso da ALCA muito contribuíram as organizações sindicais, ainda que as múltiplas campanhas contra a ALCA tenham contado com o forte envolvimento da sociedade civil, através da formação de uma Aliança Social Continental.
3) A campanha despoletada em 2005 e 2006 contra a proposta de Directiva Bolkestein que, visando a criação de um mercado único de serviços na União Europeia, incorporava o «princípio do país de origem» que instigava a formas de concorrência desleal entre trabalhadores. Assim, uma empresa de um Estado-membro da União poderia prestar um serviço noutro Estado-membro, mas continuando a reger-se pelas normas laborais do seu país de origem. Esta campanha, liderada pela CES e apoiada pelas organizações suas filiadas, teve como desfecho a aprovação (Novembro de 2006) de um texto final de Directiva já sem o referido princípio.
4) Os protestos (greves por turnos, campanhas de sensibilização na Internet, info meetings, plenários de trabalhadores, etc.) realizados em Junho e Julho de 2006 nas várias fábricas da General Motors (GM) − Europa contra a decisão da GM de encerrar a fábrica portuguesa da Azambuja. Apesar da «morte anunciada» se ter consumado em Dezembro de 2006, foram evidentes as acções de solidariedade dos trabalhadores da GM, ao ponto de os trabalhadores alemães terem mesmo accionado um fundo de greve em favor dos trabalhadores portugueses. Não colocar a força de trabalho da GM contra si mesma, apostando numa estratégia de «partilhar a dor», foi talvez a «conquista» mais meritória dos protestos, inclusive não negligenciada pelos trabalhadores portugueses afectados.
5) As mobilizações contra o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (AGCS/GATS), com o objectivo de manter a educação fora do AGCS. Ante os impactos negativos do AGCS – conversão da educação de «bem público» em «mercadoria privada»; mais privatização e desregulamentação; mais competição entre universidades; informalização dos processos de trabalho; intensificação dos ritmos de trabalho e dos níveis de stress –, o principal activismo tem sido conduzido pelas federações sindicais globais Education International e Public Services International. O papel destas tem sido o seguinte: exercer pressão junto da OMC, das conferências ministeriais, do comité executivo da OCDE e dos encontros do Comité de Comércio da OCDE, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), etc.; estabelecer coligações com organizações não governamentais (ONG); mobilizar os sindicatos nelas filiados (exemplo: a DGB, confederação sindical alemã, foi dotando os sindicatos alemães de uma expertise em AGCS; o sindicato alemão da Educação, GEW, desenvolveu uma campanha conjunta com o Ver.di, o IG-Metall e a DGB, a nível nacional, com a ETUCE/Federação Sindical Europeia da Educação, a nível europeu, e com a Education International a nível internacional)4.
Há lutas más?
Os resultados de mobilizações como as atrás referidas nem sempre correspondem aos objectivos traçados pelos seus organizadores, o que poderia levar a concluir que nem todas as lutas (greves, manifestações, formas colectivas de protesto, etc.) são «boas» na sua eficácia e nos seus resultados. É bom ter presente, no entanto, que tal eficácia não pode ser medida apenas em termos quantitativos. É um facto que é aos números que os protagonistas dos conflitos por norma recorrem: onde uns vêem o máximo outros vêem o mínimo. No entanto, a retórica de oposição que coloca frente a frente as partes em conflito parece assentar muito mais em critérios políticos do que propriamente na expressão numérica dos conflitos. É claro que uma manifestação com mil pessoas não se compara a uma com cem mil. Mas é igualmente constatável que a expressão numérica (de número de filiados) de alguns movimentos sindicais fica por vezes aquém da sua expressão política, esta sim decisiva. Do exemplo francês (conhecido pelas baixas taxas de sindicalização) vêm alguns testemunhos a este respeito, como sucedeu nos últimos anos com as paralisações nos sectores dos transportes e da administração pública, onde, entre outros pontos, esteve em causa, respectivamente, a luta contra o aumento do número de anos de descontos para a Segurança Social ou a redução de milhares de funcionários públicos.
Ainda que não conduza os governos europeus a uma inversão nas suas intenções restritivas, a jornada de protesto de 29 de Setembro aponta para um conjunto de caminhos que, apesar de há muito ansiados pelos sindicatos europeus, continuam a marcar passo: acesso a empregos de qualidade, estáveis, acompanhados de planos de formação para todos; garantia de salário decente; protecção social forte; melhores pensões; serviços públicos e sociais de qualidade, acessíveis a todos; taxas sobre as transacções financeiras; desenvolvimento de políticas industriais sustentáveis; fortalecimento dos meios de coordenação e transparência fiscal para evitar o dumping social na Europa, etc. Nesse sentido, cumpre um conjunto de funções socialmente úteis.
Por um lado, uma função de coesão social, traduzida num apelo mobilizador colectivo, demonstrando que o peso efectivo das reivindicações sindicais pode ser mais forte do que as influências ideológicas que recorrentemente dividem a actuação dos sindicatos (em Portugal, é desejável que a UGT e a CGTP respondam ao apelo da CES, ao contrário da evidente desunião aquando da jornada de protesto da CGTP realizada em 29 de Maio). Observar actores mobilizados em torno de uma causa comum é uma condição inelutável para o sucesso de qualquer manifestação, mesmo quando os seus resultados demoram a ser alcançados.
Por outro lado, uma função institucional que vem denunciar a fragilidade das relações de confiança entre actores estatais e actores sociais, traduzida num esvaziamento das noções de consulta, negociação e representação. Terão os governos europeus atendido às preocupações das organizações sindicais (e dos trabalhadores que estas representam) antes de imporem as medidas de austeridade económica que agora são alvo de contestação?
E, claro está, uma função política que, em qualquer democracia, recorda que a vocação fundadora das estruturas de representação laboral é ser garante de contrapoder sempre que os interesses do «elo mais fraco» são postos em causa ou não são atendidos.
Cada organização sindical nacional presente (ou não) em Bruxelas saberá incorporar à sua maneira aquelas funções e prestar o justo tributo à jornada europeia de protesto.
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1 Não estamos perante uma novidade (não esqueçamos que foi a partir de 1889 que a II Internacional Operária celebrizou o 1.º de Maio com dia mundial do trabalhador!), ainda que os dias de acção global ou regional (continental) se venham intensificando (em especial ao longo da última década), ocorrendo, por regra, em datas coincidentes com a realização de cimeiras de instituições financeiras internacionais ou cimeiras de ministros das Finanças. A sua configuração pode abranger manifestações de rua, destruição de propriedades/lojas, teatro de rua, desobediência civil, motins/revoltas, ocupações, distribuição pública de panfletos, etc. Para uma síntese das manifestações europeias e dias de acção convocados pela CES desde 1993, cf.www.etuc.org/r/1258.
2 Sobre as potencialidades e obstáculos do e-sindicalismo, cf. Hermes Augusto Costa, «O esindicalismo: recurso de luta sindical ou fait divers virtual?», Ensino Superior, n.º 28, Abril- Maio-Junho de 2008, pp. 42-45.
3 Sobre estas limitações a um «sindicalismo global», cf. Hermes Augusto Costa, Sindicalismo global ou metáfora adiada? Discursos e práticas transnacionais da CGTP e da CUT, Afrontamento, Porto, 2008.
4 Para uma análise destas e outras formas de manifestação transnacional, cf. Donna McGuire, «Keeping Education Out of GATS: Global Labour Mobilization Against Liberalising of Education Services – Successes and Missed Opportunities» (International Workshop: Global Challenges of Labour, Kassel, Abril de 2006) ou Hermes Augusto Costa, «Desafíos globales para la acción sindical», in Pedro Pólo e Antoni Verger (orgs.), Educación, globalización y sindicalismo, Escola de Formació en Mitjans Didàctis – STEI, Palma de Maiorca, 2009, pp. 53-72. Para uma análise de várias campanhas sindicais transnacionais em curso, cf. www.globalunions.org ou www.ituc-csi.org.