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27-01-2020        Público

Se o trabalho sempre foi uma atividade decisiva para a evolução das sociedades humanas, a inovação técnica e social constituem duas variáveis incontornáveis (e inseparáveis) nesse domínio. Importa por isso recusar o “determinismo” tecnológico e a sua “neutralidade”, como bem ensinou a sociologia: acima da tecnologia, e até da ciência, está a sociedade, os seus poderes e instituições. O “mercado de trabalho” é fruto da modernidade capitalista, mas o trabalho está muito para além da sua dimensão mercantil. 

O trabalho assalariado tornou-se dominante desde o século XVIII, e com isso cresceu a “mercadoria” força de trabalho. Foi contra isso que o movimento operário e os seus sindicatos se ergueram, conquistando amplos direitos, num longo processo conflitual que na Europa culminou com o triunfo do Estado providência. É nessa mesma linha que a OIT e a Declaração Universal dos Direitos Humanos consignaram o princípio de que “o trabalho não é uma mercadoria” (Declaração de Filadélfia, 1944). No entanto, a globalização neoliberal inverteu esse curso a partir da década de 1970. Tendências estruturais mais vastas, como o envelhecimento da população, a estagnação do crescimento, o aumento da competitividade à escala global, as crises económico-financeiras, etc., forneceram as bases e os argumentos do neoliberalismo, ajudando a legitimar medidas que colocaram em recuo as políticas sociais e o anterior modelo social. Que tendências para a próxima década?

1. Flexibilidade e desregulação. Esta é uma tendência que tende a acentuar-se, dando continuidade a processos em curso como o outsourcing, a subcontratação, o trabalho temporário, o trabalho a tempo parcial, o trabalho independente, etc., que continuam a expandir-se, multiplicando as formas e vínculos contratuais e ampliando as tarefas à distância, a individualização e reduzindo a contratação coletiva. Tal processo caminha lado a lado com alterações legislativas que vão no mesmo sentido, por força da pressão exercida por “lobbies” e grandes corporações/oligopólios internacionais. A crescente competitividade e a disputa de especialistas de “excelência”, etc., pode exigir maior “transparência” e “meritocracia” no ato do recrutamento, mas isso ocorre apenas numa ínfima fatia do setor laboral, pelo que não devemos confundir a “árvore” com a “floresta”.

2. Digitalização/plataformas. A inovação tecnológica, a revolução no campo informático, a inteligência artificial e a robótica estão a crescer rapidamente e todo esse campo vai imprimir novas linhas de transformação, tornando irreversível o regresso ao anterior modelo de trabalho – com estabilidade, segurança, condições negociadas, garantias de progressão, etc. – que vigorou na Europa (e ainda vigora em alguns países) mas que hoje está ameaçado. A computorização, a robótica, a digitalização, etc., irão “roubar” muitos milhões de postos de trabalho na próxima década; e é muito incerta a capacidade de substituição e reconversão da mão de obra qualificada para lidar com os novos meios tecnológicos.

3. Segmentação da força de trabalho. A acompanhar esta tendência, a individualização das relações de trabalho, assistiremos a uma multiplicação ad infinitum das modalidades de trabalho e da metamorfose da classe trabalhadora como um todo. As desigualdades sociais e salariais relacionam-se com isso. Há sem dúvida segmentos muito qualificados que beneficiarão desta revolução laboral (os insiders): especialistas em diversos campos são disputados pelas grandes empresas (sobretudo as de base tecnológica, que surgem agora como grande promessa nas Web Summits) e que beneficiarão das oportunidades do mercado, incluindo quadros informáticos e experts em finanças que estão a ser cooptados pelo sector bancário-financeiro, etc. Há depois os perdedores (outsiders): que serão a grande maioria da atual e sobretudo da próxima geração de trabalhadores, incluindo os que se vão ocupar (num ou em vários trabalhos precários) nas plataformas digitais ou em grandes companhias com “contratos zero horas”. 

O risco de pobreza aumenta na Europa e no mundo e, de um modo geral, tendem a crescer os problemas sociais, as doenças do foro psicológico, o “burnout” e até as taxas de suicídio relacionado com depressão e exaustão no trabalho, etc. Acresce que a instabilidade do mundo atual não pode ser desligada de fenómenos como os fluxos migratórios, refugiados de guerras e calamidades naturais, vítimas de redes internacionais de tráfico, etc., levando essas populações mais fustigadas a procurar refúgio nos países ocidentais e, lá chegados (os que chegam), a aceitar as condições mais degradantes de trabalho a troco de uma subsistência miserável (conhecem-se os exemplos).

4. Estagnação salarialNa linha do que acabei de referir, a estagnação dos salários (o salário médio parou de crescer há mais de uma década) insere-se na estratégia do atual sistema económico global, com isso incentivando a maximização do lucro com base em trabalho intensivo (e na especulação financeira) que, em muitos setores, não vai reduzir (basta olhar para as marcas de vestuário que usamos diariamente, ou para muitas das funcionalidades eletrónicas dos iPhones que carregamos no bolso). Se, por um lado, os CEOs e os altos quadros ganham com a mudança de paradigma, por outro lado, os funcionários da administração pública, a classe média, os trabalhadores da indústria e dos serviços, as gerações de jovens precarizados e desprotegidos que agora estão a chegar ao mercado de trabalho, vão ser as principais vítimas deste novo cenário. 

Ou seja, a grande maioria dos novos ocupados através da “uberização”, das “work platforms”, do “trabalho à distância”, etc., vem somar-se aos milhões já existentes, uma massa de gente que subsiste nas periferias do sistema (sem quaisquer direitos ou proteção) e que lhe serve de alimento. O trabalho manual continua a ser central, embora menos discutido porque se metamorfoseou e se tornou mais opaco. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que a tecnologia rouba milhões de postos de trabalho, estreita-se o espaço e o tempo para o lazer, cultura e cidadania. Mesmo a tão apregoada necessidade de requalificação apenas se aplica a um número ínfimo dos que (por mérito ou por carreirismo) conseguem aceder a quadros médios ou superiores.

5. Conflitualidade. Se a crispação social tende a aumentar, os cenários de uma maior conflitualidade social tornam-se verosímeis e até prováveis. Ao lado das lutas mais gerais em torno do ambiente, o foco das disputas laborais prevê-se que se centre em questões como: salários, horários de trabalho, direitos e contratação coletiva. Os protagonistas do conflito tendem a desdobrar-se em várias frentes e domínios: os sindicatos tradicionais continuam importantes e com capacidade mobilizadora, sobretudo junto dos setores mais estáveis do emprego, e com pessoal mais qualificado; novos modelos de sindicalismo vão multiplicar-se (como temos visto), com setores nevrálgicos a tentar usar o seu poder de barganha junto do Estado e dos empregadores; novas plataformas digitais poderão tornar-se ferramentas decisivas para o associativismo dos setores precários, hoje mais alheios ao sindicalismo tradicional; e, por fim, é possível que a conflitualidade na escala transnacional ganhe mais força, em especial no contexto europeu.

Em conclusão, pode dizer-se que, ao contrário do que apregoam alguns eufóricos propagandistas das virtudes do neoliberalismo, e das suas repetidas loas ao “Brave New World” digital do século XXI, há uma outra “Metropolis” sombria que se esconde sob esta cortina de fumo. Ou seja, persistem e reinventam-se no submundo da informalidade novas formas de exploração diretamente vinculadas, por um lado, ao trabalho manual e, por outro, ao consumismo alienante a que estamos expostos (hoje mais do que nunca), inclusive por via do marketing manipulador através das redes digitais.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
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