Nestes últimos dias, a sensação de que estamos a viver no fio da navalha, entre a paz relativa e a guerra aberta, é tão clara e obsessiva que é difícil pensar noutra coisa. Sabemos o que se passou: as forças armadas dos EUA assassinaram um general iraniano e desencadearam um processo de retaliação e contrarretaliação que não sabemos onde irá parar e se vai parar. Temos dificuldade em compreender as causas e em antecipar as consequências. Quanto a estas, por agora, só se vislumbram quatro: ampliam-se ódios e sofrimento de povos, os fundamentalismos terroristas aumentam o seu espaço de manobra, os especuladores vão ganhando e os fabricantes de armas também.
Procurando dar sentido aos factos acontecidos, a maior parte dos comentadores atribuiu-os à natureza errática, porventura demente, da pessoa que atualmente ocupa a presidência dos EUA, ao seu interesse em desviar as atenções do processo de destituição de que é alvo, ou ainda, a uma velha prática de agressões deste tipo, por parte de presidentes dos EUA, como forma de assegurarem vitórias eleitorais. No assassinato do general iraquiano pode estar um pouco de cada uma dessas motivações, mas isto não foi obra de um homem só por muito louco e marginal que ele seja. Em decisões militares deste alcance, a opinião do Presidente conta, mas há todo um aparelho militar, diplomático, de segurança que participa nestes processos, sem o qual nenhum passo pode ser dado. As razões para as ações do Estado norte-americano são mais plausíveis do que a demência do indivíduo que ocupa a cadeira da sala oval.
O colapso da União Soviética e a integração da China e de outras potências do Sul do mundo na economia mundial, só temporariamente se traduziram numa ordem mundial baseada na hegemonia indisputada dos EUA. Com o tempo, as bases do poder da potência hegemónica – o seu poder militar, industrial, tecnológico e financeiro – apesar de continuarem, no fundamental, dominantes, foram cedendo e continuarão a ceder face à emergência da China, à recuperação da Rússia, e a uma crescente autonomização, mesmo que apenas em parte das suas áreas de poder, de importantes países da América do Sul, da Ásia e da África.
Algures, num tempo que antecedeu e preparou a eleição de Trump, a potência hegemónica “acordou” sentindo-se em perda, logo, carente de uma viragem que a fizesse “grande outra vez”. Mais uma vez, os poderes dominantes nos EUA assumiram-se ostensivamente como senhores de uma jurisdição universal ao serviço dos seus interesses e borrifaram-se para a Organização das Nações Unidas. E contaram, como sabem que por agora podem contar, com uma boa dose de complacência dos países europeus, que continuam erradamente a fazer de conta que qualquer ato dos EUA os obriga à solidariedade acrítica, porque “somos todos da civilização ocidental”.
Essa potência está em perda, e agora é o seu ente coletivo – o Estado norte-americano – que tenderá a comportar-se de forma demente. É próprio dos grandes comportarem-se deste modo quando se sentem ameaçados nos seus privilégios exorbitantes. Nos planos geoestratégico, geopolítico e em várias áreas, o mundo está a mudar de uma forma radical. O nosso suposto protetor é cada vez mais para o resto do mundo – incluindo para a Europa da NATO – uma fonte de riscos e uma ameaça.