Opor direito e preconceito tende a invisibilizar a sobreposição entre um e outro. O racismo e o sexismo são formas de opressão estrutural, historicamente construídas, que atravessam estado, direito, instituições, grupos, indivíduos, esquerda e direita. Afirmar a ausência de preconceitos não seria expressão de uma opinião, mas negação das evidências. Assegurar constitucionalmente a igualdade é insuficiente.
Precisamos de um estado que combata ativamente as hierarquias sociais com base na raça e no género, em vez de as reproduzir. A violência policial a que assistimos no bairro da Jamaica ou o tratamento diferenciado de uma manifestação de pessoas negras na Avenida da Liberdade, o conhecido espancamento dos jovens da Cova da Moura por quem tem dever de proteger, as decisões judiciais que culpabilizam vítimas de abuso sexual, os muros físicos e metafóricos que separam grupos não são exceções à regra, ainda que possam ser interpretados como tal por quem tem o privilégio de ser confrontado com as violências estruturais apenas quando são mediatizadas.
Usufruir do privilégio branco não significa ser ativamente racista, mas ter licença para ignorar que o racismo existe. Desse lugar, é possível argumentar que andamos a inventar divisões. Estas, no entanto, vêm de longe. Pode dizer-se que uma criança não vê cor. Mas, se é certo que ninguém nasce racista, escutemos relatos de quando uma criança se descobre negra. Com frequência, não é um momento de autoidentificação, mas um processo de heteroidentificação, acompanhado da desvalorização do seu corpo e da perceção de barreiras sociais. Para uma criança cigana, a escola e seus manuais monoculturais significam o confronto com a depreciação da sua cultura. Mais de 500 anos de presença de comunidades ciganas em Portugal não chegaram para lhes dar lugar nos livros de história.
A tolerância é insuficiente, porque se alicerça na condescendência sem quebrar hierarquias entre culturas. É tempo de reconhecer a continuidade de opressões do passado, converter diferenças verticais em diferenças horizontais e promover aprendizagens reciprocas que nos fortaleçam coletivamente. Mais do que aceitar-nos nas nossas diferenças, saibamos enriquecer-nos dessa diversidade.