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03-10-2019        Público

Em Portugal, a vida material das sociedades e das economias locais, incluindo as urbanas, tornou-se demasiado estreita, está em regressão e o país apresenta-se deslaçado entre si. A administração pública aumentou o seu excesso de centralização e afastou-se cada vez mais do tecido socioeconómico territorial, perdendo o sentido da coesão e da eficiência. Não dispomos hoje de um sistema político e de políticas públicas que respondam cabalmente às preocupações que se fazem sentir nas regiões tão diferenciadas que compõem o país e que representam combinações específicas de problemas e opções.

Portugal tem hoje um esqueleto administrativo territorial de natureza napoleónica, instituído com rasgos visionários pelos primeiros governos liberais há cerca de 200 anos, quando as circunstâncias históricas, as funções do Estado, o escopo das políticas públicas e os meios tecnológicos que dispúnhamos eram radicalmente diversos. Depois do 25 de Abril, Portugal enunciou algumas vias para actualizar a sua estrutura administrativa. Desde logo, dotou de legitimidade democrática os concelhos e freguesias – reforma que ainda hoje perdura mas que crescentemente põe a questão dos seus próprios limites como instrumentos de gestão territorial. Por outro lado, inscreveu na Constituição a criação de novas unidades administrativas com legitimidade democrática – as Regiões Administrativas. Mas se tal foi plasmado na Constituição, até hoje não foram dados passos decisivos na sua concretização. Pelo contrário, quando Portugal aderiu, a 1 de Janeiro de 1986, a uma Europa fortemente regionalizada, perdeu uma oportunidade para adequar o seu aparelho político-administrativo às melhores práticas de governação territorial. Mais recentemente, quando o memorando de entendimento com a troika previa uma reforma neste campo, o mais que Portugal fez foi agrupar algumas freguesias e lançar umas Comunidades Intermunicipais que padecem dos males dos municípios que as compõem. Falta, pois, cumprir o mandato constitucional de consagrar no terreno, em obediência ao principio politico da subsidiariedade, e de acordo com os princípios hoje vigentes na União Europeia, Regiões Administrativas com sólida âncora democrática em eleições directas.

O caminho não seria difícil se a consciência do território não se tivesse esvanecido. As Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional que o próprio Estado central há muito instituiu e que produziram um estimável know-how prefiguram a estrutura futura de direcção das regiões, dotada já de importantes recursos humanos que poderiam crescer em função de transferências de competências acompanhadas de iguais reforços de pessoal que está já adstrito ao Estado central. Mas as CCDRs não tiveram meios para articular novas funções que cabiam na sua lógica desconcentrada de actuação e estão hoje diminuídas pelo refluxo centralista que predomina, faltando-lhe o músculo político de que a governação democrática precisa.

O que menos terá transparecido nos debates recentes sobre o interior é a cristalização dum modelo económico que tem vindo a ser construído pela periferialização constante de amplas áreas do território em função de uma concentração unipolar na grande metrópole da capital. É notório o enfraquecimento das cidades e do sistema urbano, que têm sido elementos activos de estruturação do território, assim como há muito se perdeu o dinamismo industrial de espaços relevantes de um país cuja capacidade produtiva não cresceu ao mesmo ritmo que outros países europeus. Daí o agravamento do fosso entre o nível de desenvolvimento económico, social e cultural das diferentes regiões, o que estatisticamente não oferece dúvidas. É esse modelo – que não encontra vozes suficientemente organizadas que se lhe oponham – que tem vindo a desestruturar o território tradicional fomentando uma crescente perda de competitividade e de coesão de vastas áreas. A recente política de austeridade elevou a níveis nunca antes vistos a uma fragilização silenciosa do tecido socioeconómico de base territorial (desde o fecho de inúmeros serviços públicos à diminuição do emprego nos sectores modernos da economia).

Num quadro destes, exigir-se-ia uma elevada consciência territorial de todas as políticas públicas e um papel interveniente do Estado central na reconstituição do território, tão afectado ele está. Valorizo a política de descentralização para o escalão municipal, acoplada a um programa de incentivos ao chamado “interior”. Mas, ao mesmo tempo, reconheço a sua insuficiência. E repudio a sub-valorização de instancias de governação sub-nacional que estão no terreno, com recursos humanos e técnicos de alta valia, mas a que falta uma sólida legitimação democrática que só eleições concedem. Não se dispõe assim da acção pública necessária nem se considera o quadro político-administrativo em que tal operação irá decorrer, antes se assumindo que a actual administração municipal o poderá concretizar. Ora, isso não parece capaz de inverter o ciclo negativo e estruturar adequadamente o território numa perspectiva democrática que dê voz e meios materiais aos portugueses onde quer que vivam, com oportunidades de vida decente.

A comissão eventual para a descentralização presidida pelo Eng.º João Cravinho apresentou, após aturado estudo, uma via possível para superarmos os obstáculos com que deparamos. Como todas as propostas, não é inatacável. O pior que lhe poderia acontecer era que sobre ela recaísse um manto de silêncio. Por respeito à Assembleia da República, que albergou tal comissão, e aos portugueses de todo o território nacional, é imperioso que os partidos políticos concorrentes às eleições de 6 de Outubro se pronunciem sobre este problema. Não poderemos aceitar que durante a próxima legislatura se venha invocar que os eleitores desconheciam os programas partidários nesta matéria. A oportunidade está aí. Espera-se de todos clareza nas posições para que este tema volte à ribalta da política nacional, ele que hoje está bem vivo no tecido social do nosso país.


 
 
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