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30-09-2019        Público [P3]

Se o rapper se poderia escudar na liberdade de expressão artística no que toca ao facto de a música e o videoclipe terem incitado à violência contra as mulheres e de estarem pejados de comportamentos masculinos tipicamente tóxicos, já pelas ameaças e insultos posteriores não tem desculpa.

Na minha vida profissional, tanto quando exerci advocacia, como agora na área da investigação académica, há questões nas quais reflicto bastante e que julgo serem de importância estrutural para as relações humanas. Uma delas é os limites da liberdade de expressão e da (ténue) linha que a separa da ofensa, do insulto, do crime.

Juridicamente, os limites da liberdade de expressão (consagrada no art.º 37º da CRP) estão, salvo a natural subjectividade inerente, definidos pelos, por exemplo, crimes de difamação e injúrias (art.ºs 180º e 181º do CP). No caso do jornalismo, esses limites são alargados, estando protegidos pela liberdade de imprensa e de informação, numa conjugação de interesses informativos e de opinião jornalística que por vezes entram em conflito com a esfera jurídica de outrem. 

Na arte, na qual a música se enquadra, os limites são ainda mais alargados. A arte e as manifestações artísticas são intrinsecamente livres, o que nos leva a concluir que um condicionamento restritivo da expressão na arte e imposições de barreiras rígidas às diversas manifestações artísticas não devem existir, sob pena de a arte se consumir a si mesma, numa antropofagia cultural. 

No entanto, apesar de largos, os limites devem existir, com a ressalva de que qualquer forma de censura é inaceitável. É imperativo que nenhuma forma de arte incite à prática de crimes, de comportamentos criminosos ou de castrações de direitos de ninguém, muito menos de quem já as sofre desde tempos imemoriais, sendo o caso das mulheres paradigmático. 

Falo em particular da música/videoclipe do rapper Valete que, de forma explícita e sem pudores, incita à violência contra uma mulher, de uma maneira ignóbil e torpe, respingando para os seus ouvintes e para a sociedade o legitimar de comportamentos criminosos. 

Esta música e o videoclipe são exemplos dos comportamentos típicos da masculinidade tóxica: a violência, a defesa da honra, o uso de armas, a propriedade sobre a mulher, o gabar da vingança. São, por consequência, misóginos, machistas e são perigosos, tanto pelo incitamento ao crime, como pela anestesia à violência, nomeadamente à violência contra as mulheres.

Como também é exemplo de machismo o comportamento que o rapper Valete teve posteriormente às críticas que recebeu, ameaçando e insultando, inadmissivelmente, quem, aqui sim usando o seu direito à liberdade de expressão, o criticou (e com razão, acrescento), a ele e à sua música/videoclipe. Falo não só das ameaças à jornalista Fernanda Câncio, como também das declarações insultuosas (e mais ou menos veladas) à jornalista Rita Ferro Rodrigues e a outras pessoas mais ou menos anónimas (aqui).

Se o rapper se poderia escudar na liberdade de expressão artística (o que, como vimos, é parca desculpa) no que toca ao facto de a música e o videoclipe terem incitado à violência contra as mulheres e de estarem pejados de comportamentos masculinos tipicamente tóxicos, já pelas ameaças e insultos posteriores não tem desculpa. 

São crime, são machistas (será que os supra-referidos comportamentos do rapper Valete e a sua reacção ameaçadora às críticas seria a mesma se estas viessem de homens?) e deitam por terra o próprio argumento/desculpa de liberdade artística, uma vez que constituem prova inabalável de que a música e o videoclipe tinham na sua génese as mais elementares manifestações misóginas e de incitamento criminoso. 

Pergunto-me, face a isto, se o rapper não será um valete de pau(s) virado e pronto para agredir as mulheres. 


 
 
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Tiago Rolino



 
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