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25-09-2019        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

No volume III de O Capital, Karl Marx (desculpem a referência ao clássico, mas só os distraídos e os ignorantes pensam que os clássicos desaparecem facilmente) argumenta que o colonialismo teve um papel importante no desenvolvimento do capitalismo, um papel que só pôde dar todos os seus frutos nos países que tinham criado anteriormente outras condições favoráveis. Não era o caso de Espanha nem de Portugal, e por isso eles não puderam modernizar-se com êxito. E conclui: "Compare-se a Holanda com Portugal, por exemplo". Quaisquer que sejam os argumentos a favor e contra esta leitura, a verdade é que Portugal não se aproveitou da expansão colonial para se modernizar e, de facto, o grande quinhão da pilhagem das riquezas das colónias foi parar a outros bolsos europeus. Não me interessa investigar as razões da perda fatal dessa oportunidade histórica. Mas intrigam-me três perguntas:
1) Porque se aventuraram os portugueses a tal empresa sabendo que os benefícios eram tão incertos? 2) Continuará esse fracasso a assombrar ainda hoje os portugueses ou, pelo contrário, confere à sua culpa colonial uma leveza quase indecorosa? 3) Porque é que os portugueses foram frequentemente postos na situação de serem precursores do que não se segue? E são estas as minhas possíveis respostas

1.  A fulgurante iluminação dos inícios, dos primórdios, do curto-prazo, cegou frequentemente os portugueses para as consequências e os desenvolvimentos de longo prazo, sobretudo porque lhe faltaram os cálculos e um corpo forte de comerciantes, de que se auto-privaram com a expulsão dos judeus. Portugal foi um país periférico antes de haver um centro europeu consolidado. Os portugueses construíram a jangada de pedra séculos antes de o arqueólogo da alma coletiva, José Saramago, a ter descoberto nos escombros da nação. Anteviram que o século XIX, arrogantemente capitalista, os viria a considerar como não verdadeiramente europeus, nem sequer verdadeiramente brancos, sorte que partilharam com espanhóis e irlandeses, apesar de serem senhores de um vasto império colonial. A vocação do seu império era ser subalterno, e assim foi durante grande parte da sua existência. O que de mais precioso passou pelo porto de Lisboa (ouro) seguiu a maior parte das vezes para outras paragens, para a Inglaterra, por exemplo. O que ficou foi o que deu à costa ou foi descarregado no porto por ser internacionalmente menos valioso do ponto de vista da lei do valor capitalista.
Mas como o capital é estupidamente reducionista, foi imenso o que ficou – o artesanato intercultural de vidas, culturas, gostos, falares, que passou a circular na sociedade portuguesa e a reproduzir-se com insondável criatividade até hoje. A propósito, há algum outro país europeu onde o primeiro-ministro seja tão fenotipicamente asiático? Abundou o que não interessava ao capital, mas enriqueceu a cultura, mestiçou gentes e paladares, gerou a saudade de ter estado em casa em tantos lugares fora de casa, de estar sempre a ir e voltar sem se levantar do sofá da sala. Enquanto outros países se dilaceraram em distinções entre campo e cidade, entre religião A e religião B, entre língua C e língua D, Portugal ficou para sempre entre o mar e a terra. Até hoje. Um país de costas para o mais útil porque o infinito do mar é mais sedutor.
Não se pense, porém, que esse mar foi um mar de rosas e que o artesanato intercultural de vidas é uma celebração sem contradições da convivialidade social. Pelo contrário, foi feito de um palimpsesto de racismos ora brutais ora disfarçados de cordialidade filantrópica. Os escravos do Brasil e os povos da África colonizada que o digam. Desse palimpsesto resultou o racismo de hoje, um racismo insidioso que, por não ser capaz de ter orgulho de si mesmo, tem vergonha e dissimula tão erraticamente que ora parece um racismo antirracista ora um antirracismo racista. É tão enraizado nos portugueses o hábito de dizer o que não fazem e de fazer o que não dizem que deixam aos polícias a tarefa de dizer a verdade do que são e do que não são.  

2. A culpa colonial foge a todos os determinismos históricos porque não foi o colonialismo que contribuiu para modernizar Portugal, foi antes o fim do colonialismo. A revolução de 25 de Abril de 1974 foi o resultado do colonialismo virado do avesso, duplamente anticolonial, porque libertou tanto o colonizado como o colonizador. Mas, por essa razão, só em pequena parte foi obra dos portugueses. A maior parte dessa obra deve-se ao sacrifício heroico dos povos em luta contra o colonialismo português, muitas vezes com armas na mão, pelo menos desde 1961, arriscando massacres e destruições por mensagens de chumbo e de napalm. É o mais fenomenal caso de mestiçagem libertadora pois, sem a luta heroica dos libertadores das colónias, talvez os portugueses não tivessem conseguido libertar-se com tanto radicalismo do ditador do atraso. A comparação com a transição na vizinha Espanha a partir de 1976 é inescapável. Enquanto a Espanha democrática do pós-franquismo foi sempre mais franquista que os democratas espanhóis supuseram, os portugueses enterraram o salazarismo para sempre por mais que a extrema-direita se exercite em exumações frustes.
O fim duplo do colonialismo era radical porque ditava não só o fim do colonialismo, mas também o fim do próprio capitalismo, o qual, nos impérios dominantes, se nutrira ao longo dos séculos do colonialismo por via da pilhagem das riquezas naturais e humanas (da escravatura à mestiçagem por violação de mulheres nativas). Os países que se libertaram do colonialismo português optaram sem exceção pela via do socialismo para o desenvolvimento, caso único nunca visto na história das descolonizações das colónias europeias. Por sua vez, logo que acordaram da confusão de despertar num lugar tão diferente daquele em que tinham adormecido, os portugueses da Revolução do Cravos rumaram para a revolução socialista com o mesmo voluntarismo e desafiando as mesmas leis deterministas com que se tinham embrenhado nos oceanos ignorados. Foi, no entanto, um radicalismo tão real quanto ilusório. O capitalismo de outrora, caseiro e raquítico, soubera entretanto globalizar-se e fortalecer-se com os parentes dominantes da partilha do mundo, dotados de instrumentos tão mortíferos como o FMI e a chamada guerra fria.
As ex-colónias foram uma a uma sendo disciplinadas sob pena de castigos abissais, e Portugal, 12 anos depois da Revolução, acolheu-se ao capitalismo dos ricos – a União Europeia – na esperança de buscar aí um substituto do El Dorado que em vão tinha imaginado séculos atrás com a aventura colonial. Mas tal como antes, essa busca ficou muito aquém das expectativas. Aos portugueses, que se criam e queriam ser finalmente brancos, iguais aos europeus de sempre, foi reservado um canto da sala menos iluminado, onde as cores se confundem e o mau aluno permanece, por melhor aluno que seja. Uma escola para deficientes tende a ser uma escola deficiente. A Europa transformou-se num imenso mar seco, e o que deu à costa foi muito e muito bom, mas sob condição de Portugal não sair donde estava. Portugal continua a ver a Europa por um binóculo, mesmo quando nele se vê e o que vê se parece tanto com o que é.

3. Os precursores do que não se segue são uma constante da história dos portugueses. São eles que conferem um certo tipo de otimismo que caracteriza os portugueses, o que designo por otimismo trágico. Trata-se da recusa em admitir que não há alternativa a um dado estado de coisas, ainda que as dificuldades para atingir tal alternativa sejam provavelmente insuperáveis. Trata-se do oposto do vulgar fatalismo que tão vulgarmente se lhes atribui. Escolho dois exemplos entre tantos. O primeiro é o de Sílvio Lima, jovem professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, afastado compulsivamente das suas funções pelo infame decreto salazarista 25.317, de 13 de maio de 1935, o mesmo que expulsou outros jovens e insignes professores, como Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa, Adelino da Palma Carlos e Abel Salazar, para além de muitos outros intelectuais não universitários, como José Rodrigues Migueis, Agostinho da Silva e Jaime Carvalhão Duarte. Para além das muitas diferenças entre eles, o que os unia era o recusarem ser intelectuais genuflexos ante a ditadura e o fascismo clerical que assolava o país. Era o tempo dos "campos de extermínio invisíveis" de que falava António Sérgio.
Escrever a sociologia das ausências do século XX português consistiria em analisar os danos que a ditadura causou ao desenvolvimento das ideias destes intelectuais brilhantes. Por exemplo, Sílvio Lima, filósofo e psicólogo, foi um extraordinário precursor de ideias que apaixonaram décadas mais tarde os seguidores apressados de Michel Foucault, Jacques Derrida, Giles Deleuze e Michel de Certeau. Homem do seu tempo, também escreveu páginas abomináveis sobre as mulheres. Tudo isso pode ser lido nos dois volumes das suas Obras Completas publicadas pela Fundação Gulbenkian. E tudo será mais bem compreendido se for acompanhado pela leitura de uma das dissertações de doutoramento mais notáveis que li ao longo dos últimos 50 anos (Paulo Archer de Carvalho, Sílvio Lima: um místico da razão crítica, [Coimbra: Palimage, 2018, dois volumes]). Tragicamente, esta tese, hoje impossível à luz das mentecaptas regras de Bolonha, é o inverso do precursor do que não se segue: é expressão do que poderia continuar a ser se a estupidez do capitalismo universitário não transformasse o tempo da reflexão e da escrita lenta no tempo da repetição e da escrita apressada.

Num campo totalmente diferente, o exemplo mais recente de um precursor do que não se segue talvez seja o Fado Bicha.  Ao contrário do que se pensa comummente, o fado não é expressão da submissão dos portugueses ao destino e ao determinismo. É antes a expressão da fuga sempre tentada e sempre frustrada a esse destino e a esse determinismo. O êxito do Fado Bicha, de João Caçador e Tiago Lila, é o testemunho mais eloquente dessa rebeldia esteticamente bem conseguida porque gerada à beira da marginalidade com vista para um centro que não se sustenta senão quando é contestado. Serão também eles precursores do que não se segue? Em qualquer caso, o Fado Bicha resume brilhantemente o otimismo trágico dos portugueses.

 


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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