Andou muito bem a Assembleia da República (AR) ao aprovar, no passado dia 11, o voto de condenação “Da criação de um «museu» dedicado a Salazar em Santa Comba Dão”, apresentado pelo Partido Comunista Português. Há que desmontar os clamores contra a esquerda “proibicionista” e denunciar as tentativas de “normalização” pretensamente neutra, na avaliação da sociedade sobre as figuras da nossa história. É criminoso colocar no mesmo plano quem espezinhou a democracia, as liberdades e valores do progresso e quem, com enorme sacrifício, por vezes da própria vida, os defendeu.
A aprovação deste voto de condenação não matará o assunto, mas é muito importante a legitimação política e institucional dada à crítica que foi sendo feita a este processo nos últimos meses. Ela prestigia a AR e obriga a um aprofundamento de argumentos para anular a iniciativa, que pode regressar com o argumento de que nunca esteve em causa qualquer museu laudatório de Salazar, mas sim um Centro Interpretativo do Estado Novo.
É necessário que os portugueses sacudam “passividades bucólicas” (expressão de Pedro Adão e Silva), que muitas vezes nos têm marcado negativamente, e situem melhor o lugar e o valor da memória. José Saramago dizia que “somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”. Tratemos então da memória, tarefa primeira dos historiadores, mas também obrigação de pessoas de muitas outras áreas do saber. E não nos distanciemos do que sabem, sentem ou sentiram os “simples cidadãos”, porque a responsabilidade é de todos.
A iniciativa posta em andamento é objetivamente local, mesmo que a sua amplitude seja intermunicipal, dada a natureza da entidade que coordena a rede de estudo e a afirmação de Figuras Históricas. O suporte científico do CEIS20 propiciou o envolvimento de historiadores insuspeitos. Mas estes, na minha modesta opinião, encasularam-se e deixaram-se enredar num processo profundamente contraditório e escorregadio. Luís Reis Torgal afirmou que esta equipa “jamais seria capaz de criar um museu hagiológico sobre Salazar”. Mas não bastam as intenções e até empenhos de partida.
Não é de todo viável criar ali um verdadeiro Centro Interpretativo do Estado Novo. Que tipo de “espólio” podia ser levado para Santa Comba? E seria observado numa mescla em que entraria a utilização turística da figura de Salazar?
Aquele é o espaço que, por natureza, tenderá sempre a colocar em relevo os traços e comportamentos menos tenebrosos ou mais simpáticos do ser humano Salazar – todo o ser humano os tem. Ora, esses são os mais distanciados do pensamento, da vida e, acima de tudo, dos atos políticos do ditador e fascista Salazar, que impôs um regime fortemente repressivo e autocrático e colocou o país desfasado na história – veja-se os indicadores de desenvolvimento que o país tinha. Salazar, conscientemente, espezinhou as liberdades e direitos humanos, provocou violento sofrimento aos portugueses e cometeu imensas atrocidades sobre os angolanos, os moçambicanos, os guineenses, os cabo-verdianos, os são-tomenses, os timorenses e os goeses.
Na democracia que se fez duramente contra Salazar não há lugar, nem para reabilitações, nem para avaliações pretensamente neutras da sinistra figura.