A Câmara Municipal de Santa Comba Dão decidiu recuperar o seu projeto para visibilizar a figura de António de Oliveira Salazar, com a ideia de construção de um “Centro Interpretativo do Estado Novo”, na aldeia do Vimeiro, terra natal do ditador. É uma história longa, com vários capítulos, e que agora parece avançar. A iniciativa levou a um abaixo-assinado de repúdio por parte de 204 ex-presos políticos e a uma carta dirigida a António Costa, assinada por cerca de 18 mil pessoas. Ao mesmo tempo, levantaram-se vozes que entendem que o que se trata fundamentalmente é de preencher o futuro espaço memorial com a isenção histórica. A assessoria ao processo por parte do CEIS20 da UC, com o envolvimento de importantes historiadores do Estado Novo, como Luís Reis Torgal e João Paulo Avelãs Nunes, reforçaria esta perspetiva.
Acho, porém, que a questão essencial se coloca num outro plano. Desde logo, observe-se que a intenção do projeto é a de impulsionar o “potencial turístico da região”, nas palavras do próprio presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão. Integrado num Roteiro de Figuras Históricas da região, trata-se no fundo de estimular as oportunidades turísticas que se abrem com o aproveitamento da figura do ditador como um ilustre “filho da terra”. Essa exploração comercial já teve outros momentos – caso da tentativa de criar uma marca de vinhos da região intitulada “Memórias de Salazar” – e nada garante que não se possa acentuar havendo um enquadramento local que objetivamente o legitime.
Basta olhar para o exemplo de Predappio, localidade onde nasceu Mussolini, transformada há anos num espaço que acolhe celebrações fascistas e ampla comercialização de merchandising sobre o Duce. Com razão se dirá que Portugal não é a Itália e que o salazarismo não foi o fascismo italiano. Mas é impossível garantir – mesmo não sendo essa a intenção dos promotores - que o espaço não venha a ser apropriado por mobilizações de timbre antidemocrático, num quadro de ascensão um pouco por todo o mundo da extrema-direita. Nem é possível desconsiderar o facto de estes lugares terem uma especial apetência para aguçar a atração nostálgica, com tudo o que isso tem de perverso para o próprio conhecimento histórico. Não se trata, portanto, de recear o saber, mas o oposto. Qualquer musealização ali será sempre sobredeterminada pela experiência emocional de andar nos espaços do ditador. É esse o seu peculiar chamariz.
Na verdade, a produção académica dedicada à relação entre memória, património e território alerta para a necessidade de se integrar a dimensão contextual na análise de memoriais, museus, monumentos ou centros interpretativos. Por outras palavras, fazer um centro interpretativo no Vimieiro não é igual a fazê-lo num outro local qualquer. A existir, o futuro centro interpretativo ficará instalado na Cantina-Escola Salazar, que se situa na Avenida Dr. António de Oliveira Salazar, e que é enquadrado por um complexo memorial que dotará de um certo sentido qualquer experiência de visita. Teremos em redor os espaços onde Salazar se fez moço, a casa de Salazar e da sua família, os seus objetos domésticos, a campa rasa destinada a atestar essa imagem de um político que soube representar-se como antipolítico, um humilde servidor da nação que só com ela se casou. Esta imagem, que Salazar e as elites propagandísticas do regime cuidadosamente criaram, é ainda hoje preservada em setores consideráveis da população. A vitória do ditador no concurso Grandes Portugueses ou os milhares que estão a assinar uma petição que brada “Museu Salazar, sim!” são pequenos e episódicos sintomas disso.
Sabe-se como a democracia portuguesa ainda lida mal com este passado. Basta pensar na constante rasura da guerra e da violência colonial – parte frequentemente esquecida desta história - ou na consideração tardia e deficiente do lugar da resistência como marca fundamental da rutura democrática. É verdade que a decadência do regime e a legitimidade pós-25 de Abril, entre outras razões, acabou por obstar ao ressurgimento de grupos abertamente salazaristas com expressão popular. Mas também é certo que permanece uma certa imagem do ditador – distante, austero, quase desconectado do que ia acontecendo por cá e nas ex-colónias – cuja manutenção é o seu paradoxal sucesso. Salazar sempre soube ficcionar-se como ausente através do que José Gil definiu como uma “retórica da invisibilidade”. Ironicamente, ele acaba por regressar novamente como presença invisível, como um nome que se retrai na designação do anunciado “Centro Interpretativo do Estado Novo”. Alavancado pelo poder local, todo o contexto que aí se estabelecerá corre o sério risco de patrimonializar a figura do ditador. E isto parece-me, no mínimo, uma má ideia.