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03-08-2019        Público

No mundo atual, o sucesso da ação política depende cada vez mais da imagem e capacidade retórica dos líderes do que da sua visão estratégica ou dos objetivos concretos em disputa. O campo sindical – não de agora, mas desde há décadas – perdeu muito da sua combatividade e espírito de luta coletiva. Em tempos de individualismo e alheamento político dos trabalhadores, prevalecem os interesses egoístas, a lógica do “free rider” e a “juridificação” das lutas. Entretanto, cresce o vernáculo populista em porta-vozes de duvidosa legitimidade, disfarçados de “fénixes renascidas”.

Ao longo do século XX, o movimento sindical atravessou, como se sabe, sucessivos ciclos: começou por uma fase de maior dinâmica e radicalismo de base; seguiu-se um processo de institucionalização do “diálogo social”; e pelo meio sofreu diversas situações de instrumentalização por parte de poderes e regimes autoritários, como o fascismo de Mussolini, o Estado Novo de Salazar, e outros. Mas foram sobretudo as correntes mais combativas, nomeadamente as de influência anarquista e comunista, que maior influência tiveram nas conquistas da classe trabalhadora e no progresso das sociedades. Tais movimentos conseguiram até resistir aos “sindicatos-fantoche” – e, nalguns casos, tomá-los por dentro – promovidos por regimes de tipo fascista, cientes de que a ideologia do poder passava por vigiar, controlar e domesticar os trabalhadores. Em Portugal, a constituição de 1933 e o Estatuto do Trabalho Nacional criaram e regulamentaram os sindicatos corporativos, abrindo caminho a um longo processo de silenciamento da chamada “classe perigosa”. A conhecida FNAT – Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho deixou-nos, a esse respeito, uma eloquente experiência histórica de manipulação ideológica dos trabalhadores. Em especial os núcleos mais conscientes e politicamente ativos do operariado sofreram com a prisão e perseguição sistemática dos aparelhos repressivos do Estado autoritário ao serviço da elite do poder.

Num tal cenário, o melhor barómetro e garante da combatividade e resistência das lideranças sindicais (e políticas), ou seja, a principal fonte de confiança na lealdade do líder em defesa dos interesses da classe, residia no critério da origem operária, alegada prova de que só alguém que sentiu na pele a dureza dessa condição poderia ser-lhe fiel. Embora – como também sabemos – tal “garante” tenha evidenciado não poucas perversões, as correntes comunistas fizeram jus a esse lema e foi, em larga medida, com base nele que criaram e consolidaram sucessivas vanguardas de revolucionários e militantes capazes de resistir, por um lado, à violência da tortura e, por outro, às tentações e vícios burgueses, associados ao conforto da condição dirigente. Mesmo no calor das lutas sociais e sindicais do pós-25 de Abril, a cultura popular e o operariado desconfiavam dos “engravatados”, figuras que por vezes se infiltravam no movimento, a fim de o manipular para insondáveis fins. Por isso, em diferentes momentos históricos, as correntes e/ou dirigentes supostamente mais propensos ao consenso e ao diálogo com os patrões foram pejorativamente cunhados de “amarelos” (sinónimo de “conciliadores” ou mesmo “traidores” à classe). Também nessa matéria o mundo mudou radicalmente e até os “vermelhos” revelam hoje cores mais esbatidas.

Vem isto a propósito da atual luta dos camionistas (embora outras possam integrar-se neste registo). Não se trata de pôr em causa nem o direito à greve nem mesmo a natureza legitima das reivindicações dos camionistas. De resto, sobre este ciclo grevista do chamado “novo” sindicalismo já nos debruçámos em artigo neste jornal (“Novo sindicalismo, velhas questões”, 8/05/2019). Várias dessas ações reivindicativas, que nos últimos tempos surgiram em Portugal, têm o mérito de trazer de novo à reflexão a questão sindical, os seus desafios, dificuldades e dilemas com que hoje se confronta. E sendo esse campo um pilar fundamental para a coesão e equilíbrio da sociedade, vale a pena situar o tema no contexto do atual enquadramento sociopolítico, quer no plano mais geral quer a nível doméstico.

Em primeiro lugar (1), inscreve-se na linha de tendências sindicais de novo tipo, onde o velho operariado quase desapareceu perante um mercado de trabalho extremamente segmentado e politicamente pulverizado, com o próprio sindicalismo a resvalar para fórmulas mais fechadas e assentes em interesses específicos de setores do mercado de emprego; em segundo lugar (2), vivemos hoje numa sociedade crescentemente atomizada, individualista e consumista, sujeita cada vez mais ao efeito da mediatização e às imensas ilusões daí resultantes; e, em terceiro lugar (3), no plano político, passamos por uma fase de expansão dos populismos de extrema-direita na escala internacional, enquanto o país resiste e parece estar, de certo modo, em contraciclo com tais tendências (isso agravado pelo ciclo eleitoral e os indícios de continuidade do governo de esquerda). Muitas das agitações laborais e ações grevistas que vêm ocorrendo (ou estão agendadas para os próximos tempos) evidenciam sinais de contaminação por essas diferentes condicionantes. Efetivamente, aspetos como o processo geral de segmentação e proliferação de novos sindicatos (pequenos, mas poderosos), o aumento da litigação no plano jurídico e o clima de crispação por parte de setores sociais do campo da direita, contribuem para o acicatar do ressentimento, sobretudo com o avizinhar das eleições e face a um cenário de ausência de alternativas políticas.

Para além disso, parece reunir-se no caso da greve dos camionistas uma inquietante conjugação de fatores que resultam não só dos aspetos já referidos mas também do perfil da liderança deste “movimento”. Na verdade, não pode deixar de merecer reflexão, desde logo, o facto de o principal porta-voz do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas, que é a imagem da “indignação” contra o trabalho violento e a exploração dos camionistas, ser um personagem (Pedro Pardal Henriques) que tem no seu currículo vários processos e acusações de fraude em Portugal e noutros países (com um processo no DIAP por burla), que nunca conduziu um camião nem muito menos foi profissional de pesados, e ao que consta passeia-se de Maserati. Para além disso, a figura deste personagem nas múltiplas entrevistas televisivas que deu, desde o vestuário e a brilhantina, à sua afabilidade ensaiada e falsa (em contraste, aliás, com a violência verbal dos seus “posts” nas redes sociais), são elementos que não só deixarão apreensivo qualquer sindicalista digno desse nome, como, noutro contexto, seria expulso de um coletivo operário minimamente ciente do significado – histórico, ético e político – do papel do movimento sindical. A sua postura sibilina e voz insidiosa são por demais evidentes.

De resto, a afirmação mais substancial que fez numa televisão foi a de que “o direito do trabalho está a evoluir e os sindicatos devem evoluir também” (sic), o que é bem ilustrativo da sua “cultura sindical”. Por outras palavras, enquanto o movimento sindical denuncia, e bem, o retrocesso em curso na legislação laboral por ela estar amarrada a uma lógica neoliberal que subtrai direitos e estimula o “trabalho-mercadoria” (já denunciado por Marx há 150 anos e reiterado pela Declaração de Filadélfia da OIT em 1944), este alegado representante prefere glorificar as tendências mercantilistas dominantes, a comprovar o seu alinhamento com o patronato mais retrógrado. 

Em suma, estes sindicatos ditos independentes, mais do que as proclamações bondosas em defesa dos trabalhadores, trabalham sim – como no caso da anunciada greve para 12 de agosto – para parar o país e lançar o caos. Os ecos já vêm de longe mas ganham hoje novas ressonâncias: andam espectros a assombrar os trabalhadores alheados da verdadeira cultura sindical... e outros espectros ameaçam as democracias ocidentais. Portugal tem escapado. Até quando?...


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
democracia    sindicatos    greve    direitos laborais