O Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), aprovado pela Lei n.º 62/2007 (10 de setembro), além de obedecer a orientações internacionais no quadro dos Acordos de Bolonha, visava sobretudo contribuir para uma maior flexibilidade, abertura e eficácia na preparação dos licenciados para um mercado de trabalho mais competitivo e exigente, e ao mesmo tempo estimular a produção científica e tecnológica do país. É verdade que em quase todos estes aspetos se verificou uma evolução positiva, mas é duvidoso que tal se deva ao novo modelo criado pela referida lei. Questões como os custos financeiros, a abertura das instituições de ensino superior (IES) à sociedade e o problema da democracia interna são aspetos que merecem alguma reflexão, sobretudo numa altura em que, após 12 anos de vigência, as condições sociais e o contexto político se alteram substancialmente.
1. Custos do crescimento: vale a pena lembrar que, desde a década de 1990, parte do financiamento das IES já era suportado pelas propinas, o que significa que o esforço das famílias para a educação superior dos seus filhos cresceu significativamente desde então. A despesa pública dedicada à educação do Ensino Superior (ES) era, em 2019, de cerca de 200 milhões de euros abaixo da média dos países da UE (1,5% em Portugal contra 1,9% na média europeia). Num momento em que se reconhece a importância fulcral da formação superior para o desenvolvimento económico, científico e tecnológico, o papel da Universidade Pública está ainda muito abaixo do desejável nas oportunidades que oferece aos estratos mais baixos da sociedade. Sendo considerado um fator decisivo na coesão da sociedade e uma plataforma de mobilidade social, os níveis de acesso dos jovens ao ensino superior em Portugal, apesar do progresso verificado nas últimas décadas são, todavia, ainda insuficientes.
De facto, em 2017, no segmento dos 30 aos 34 anos, 34% já possuía o ensino superior, mas a aproximação às médias da União Europeia estava ainda longe de ser cumprida, enquanto no caso da população ativa no seu conjunto (15 e os 64 anos) apenas 21,7% possuía frequência do ensino superior (Eurostat, 2017). A recente medida do governo de redução do valor das propinas vai seguramente acelerar essa tendência e isso é, evidentemente, positivo. Em todo o caso, Portugal permanece um dos países europeus onde a percentagem da população com o ensino superior é das mais baixas, onde o volume da despesa suportada pelas famílias é das mais altas e onde é menor o número de estudantes que beneficiam de bolsas de estudo.
2. Democracia protocolar: o RJIES introduziu mudanças significativas nos órgãos de governo das IES, visando sobretudo uma maior eficácia e abertura ao mercado de trabalho. No entanto, os principais resultados traduzem-se num maior centralismo, com o poder unipessoal reforçado, quer ao nível da cúpula (reitores ou presidentes), quer nas faculdades e departamentos, com o apagamento de órgãos colegiais como os conselhos diretivos, científicos e pedagógicos. Embora o diretor da faculdade seja eleito, a lei permite que nessas unidades orgânicas o diretor seja ao mesmo tempo presidente dos conselhos Científico e Pedagógico, o que não só desvirtua o espírito colegial mas também a autonomia relativa de cada órgão.
No que respeita ao novo órgão de governo, o Conselho Geral (CG), ele é democrático e participado na eleição dos representantes dos professores, mas num segundo passo a democracia é abruptamente travada, isto é, são apenas os professores – em geral cerca de metade dos elementos do órgão – que “escolhem” os representantes externos (cerca de um terço dos seus membros). Acresce que, nas universidades que optaram pelo regime fundacional, o CG perdeu importância, tornando-se um mero órgão consultivo e de apoio à decisão em favor do Conselho de Curadores. Já nas IES que não o fizeram, aquele órgão assumiu um papel de fiscalização da equipa reitoral e de apoio à definição do plano estratégico, mas os resultados práticos são escassos.
Na verdade, com apenas cerca de quatro reuniões ordinárias por ano, a capacidade funcional do CG é diminuta e a inovação que trouxe reduz-se a dois aspetos: a presença de representantes externos e a capacidade de eleição do reitor. No primeiro caso, essa presença não creio que tenha trazido um contributo substancial – crítico e construtivo – da sociedade civil para o seio das IES, pois, a força simbólica da universidade (enquanto instituição ainda bastante sacralizada em Portugal) tende a condicionar a intervenção dos membros externos, o que conduz, por via de regra, ao seu alinhamento acrítico com a figura que melhor personifica a instituição (o MagníficoReitor). No segundo caso, o processo de eleição do reitor por escassas dezenas de conselheiros tornou a democraticidade ainda mais restrita, e com isso as bases da academia desmobilizam e alheiam-se ainda mais dos problemas e do debate.
3. Sexismo e desigualdades: a cultura tutelar e a democracia mitigada refletem-se também na hegemonia do poder masculino. À semelhança do que acontece noutros órgãos e instituições democráticas, à Universidade Portuguesa deve também aplicar-se o princípio da equidade entre homens e mulheres nos seus órgãos de governo. Num sistema de ensino onde as mulheres têm, desde há muito, maior peso estatístico e mais sucesso nos resultados, por que razão a maioria dos órgãos de governo (e até as estruturas do dirigismo estudantil) continua a ser marcadamente masculina? Para além da escassa representação de estudantes nos Conselhos Gerais (apenas 15%), o desequilíbrio de género é flagrante, como revelam alguns estudos recentes.
Por exemplo, entre os representantes de estudantes nos CGs, os homens representam 82% dos membros; entre os professores são 70,4%; e nos membros externos 83% são homens. Em média, nos CGs das universidades portuguesas 75,4% dos conselheiros são homens (veja-se: Oliveira, A.C., Peixoto, P., & Silva, S.; O papel dos Conselhos Gerais no Governo das Universidades Públicas Portuguesas: a lei e a prática. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra). O sexismo está inclusivamente presente entre o corpo estudantil, onde ocorrem casos de assédio e abuso, que se exprimem no contexto das praxes. Quebrar o traço sexista na gestão das instituições passa por garantir a obrigação de que todas as listas candidatas respeitem a paridade de género. Mas estarão as universidades portuguesas em condições de fazer aplicar o limiar mínimo de 40% de mulheres e homens nas estruturas dirigentes (lei n.º 62/2017), medida que se prevê entrar em vigor nas instituições de ensino superior públicas a partir de 1 de janeiro de 2020?
4. Renovação das elites: as IES e em particular as Universidades Públicas ocupam desde sempre um papel decisivo na formação e renovação das elites. É positivo que haja hoje maior abertura e democraticidade no acesso ao ES, mas por isso mesmo é que precisamos de mais investimento nos conteúdos cívicos, pedagógicos e culturais. Quero com isto dizer que, apesar da importância fulcral da formação técnica e profissional avançada (e nesse plano os jovens portugueses estão a dar cartas a nível internacional), a Universidade tem de continuar na senda do humanismo, estimular a liberdade de pensamento e o espírito crítico, e proteger o lugar das ciências sociais e da formação cultural e artística no seu seio.
Para concluir, a democratização não deve ser sinónimo de massificação. Há, pois, que travar o utilitarismo que domina hoje o ensino superior com a avalanche do “mercado de títulos” académicos e a asfixia de métricas e critérios de avaliação de carreiras que corroem a verdadeira valorização do saber pelo saber. Só deste modo se pode renovar a missão da Universidade no desenvolvimento do país, não só nos planos económico, científico, tecnológico e cultural, mas sobretudo na definição de novas estratégias vocacionadas para o fortalecimento da cultura, da cidadania e revitalização das instituições democráticas, hoje ameaçadas.