Na noite em que pudemos assistir, pela televisão, ao discurso e ao espetáculo - com aspetos grotescos - da apresentação de recandidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos da América, tive a sorte de em seguida apanhar, num outro canal, uma excelente entrevista de Lídia Jorge, em que esta lúcida escritora portuguesa falou de realidades que marcam hoje a sociedade. Lídia Jorge constatava que em vários países se estão a eleger dirigentes políticos que se posicionam não como líderes comprometidos com valores democráticos, mas sim como chefes de manada.
As suas propostas programáticas assentam na identificação de pretensos inimigos (internos e externos) do povo que querem mobilizar, para transformarem este em manada organizada disposta a guerras com os outros. É uma lógica de sobrevivência ancestral, absolutamente prenhe de egoísmo, desrespeitadora da pluralidade cultural e dos direitos dos povos, da igualdade entre os seres humanos, da relação metabólica homem/sociedade/natureza que marcam a modernidade; um rumo muito perigoso despido de solidariedade, de tolerância, de partilha democrática. Diz a escritora que na atualidade qualquer cidadão atento ao que se passa à sua volta tem, todos os dias, pelo menos um momento em que fica a pensar poder0mos estar à beira de um enorme desastre bélico, pois é latente todo um potencial explosivo que pode rebentar a qualquer momento.
Nos seus discursos para organizar a manada, Trump não olha a meios: diaboliza os imigrantes e os direitos específicos das mulheres e de minorias; a sua “América Grande” só existe no cenário de uma subjugação total dos interesses dos outros povos e países; as evidências da ciência são negadas e a imparcialidade da justiça é substituída pela cartilha da manada, que também serve para tornar verdade a mentira mais descarada. A expressão “a América primeiro” surge como desrespeito total da democracia. O inimigo externo são todos os países do mundo que não se submetam.
Bolsonaro e os seus estrategas ensaiam o mesmo no Brasil. Expressam de forma ainda mais viva o ódio contra os mais desprotegidos e contra os que deram a vida ou se sacrificaram pelas liberdades. É impressionante toda a urdidura feita para explorar contradições, para tirar racionalidade, espaço e condições de debate político. Bolsonaro simplesmente não discutiu com ninguém. A sua proposta residiu numa argamassa de mentiras e de negações vindas de múltiplos campos para se opor ao inimigo interno, identificado, no essencial, no PT e em Lula da Silva, mas alargado progressivamente a todos os defensores da democracia e ao Estado de Direito. O objetivo é fazer regredir o patamar de desenvolvimento da sociedade brasileira a favor dos mais privilegiados e incrementar aventuras fascistas e retrógradas internas e externas.
O governo italiano e em particular Matteo Salvini diaboliza os imigrantes e outros “inimigos” para criar e ampliar a manada que lhe possa propiciar perigosas aventuras. Quando vemos um corajoso jovem português sujeito a um julgamento que pretende atirá-lo para a cadeia por ter salvo inúmeros seres humanos, algo de muito podre está a desenvolver-se neste espaço europeu que também é o nosso.
Os povos não são manadas se derem efetividade à democracia.