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07-05-2019        Público

Há mais de 20 anos que a questão sindical tem sido objeto de pesquisa em diversos projetos e publicações realizadas a partir do CES – Universidade de Coimbra, onde inclusive decorre um programa de doutoramento dedicado às temáticas das Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo. Em várias dessas frentes procurámos desde sempre manter o diálogo e contribuir tanto quanto possível para a revitalização e renovação do sindicalismo português. A reflexão e a crítica construtiva que apresentamos neste texto é mais um contributo nesse sentido.

Nos últimos tempos parece assistir-se a um ressurgimento do interesse pelos temas laborais e sindicais. Greves ditas selvagens, bloqueios, ações radicais conduzidas por setores menos organizados da força de trabalho, profissões como os estivadores, os transportes aéreos, as greves recentes de médicos e enfermeiros, a greve dos camionistas, etc., têm concentrado as atenções, num momento em que crescem na Europa e no mundo novas modalidades de protesto e de ação coletiva capazes de mobilizar impressionantes contingentes de trabalhadores (veja-se os coletes amarelos em França) ou de bloquear infraestruturas fundamentais para o funcionamento normal da sociedade e da economia (veja-se o recente exemplo no nosso país da greve dos camionistas de matérias perigosas).

Em Portugal, a multiplicação do número de sindicatos nos últimos anos (em especial os ditos sindicatos “independentes”) e ao mesmo tempo o florescimento de ações grevistas de natureza imediatista e corporativista não deixam de nos interpelar sobre que papel, que desafios enfrentam hoje os sindicatos tradicionais. Pergunta-se, pois: estão estas novas dinâmicas a ocupar um vazio deixado pelo campo sindical instituído? Por outro lado, conseguem estas modalidades “inorgânicas” de sindicalismo responder às novas exigências da sociedade civil e dos trabalhadores?

Para responder a estas questões, importa sublinhar as principais diferenças entre os sindicatos ditos “tradicionais” e os sindicatos ditos de “novo” tipo ou “independentes”. No primeiro caso, estamos perante o resultado de dinâmicas de organização dos interesses laborais que se foram constituindo a par e passo com o desenvolvimento das sociedades do capitalismo democrático – onde o sindicalismo se tornou um elemento integrante dos modelos de diálogo sociai tripartidos – tornando-se atores fundamentais da regulação do conflito nas democracias liberais e mais tarde do neocorporativismo democrático, que aliás decorre em diferentes escalas, desde a nacional, à europeia (modelo social europeu) até à escala internacional (de que é exemplo a OIT). No segundo caso, estamos perante um sindicalismo situacional, ou mesmo populista, por combinar os legítimos processos de reivindicação laboral com o descontentamento e desconfiança relativamente à democracia e aos modelos sindicais institucionalizados.

É discutível, ou mesmo duvidoso, que este novo sindicalismo possa ser entendido como tal. E isto por duas razões principais: a primeira é a de que ignoram os princípios da comunidade e solidariedade laborais, os quais, não obstante as diferentes profissões, carreiras, categorias profissionais, etc., sempre conferiram a principal base de unidade às lutas laborais através da identidade partilhada pelos sindicatos; a segunda, igualmente preocupante, é a de que a metodologia de financiamento dos conflitos laborais (dos seus custos) com recurso aos crowdfundings, por exemplo, e a convocação de greves por tempo indeterminado, tendem a colocar fora da regulação democrática os processos reivindicativos.

Podemos entender, neste contexto, a importância das reivindicações de carácter pecuniário, mas muitas outras dimensões são apenas invocadas como elementos de negociação e não como finalidades a alcançar. São exemplo disso a questão das carreiras, as condições de trabalho, o modo como a exploração é exercida sem qualquer respeito pelo trabalho digno, etc.. Daí que esta dicotomização das estruturas sindicais – que de facto nos parece artificial e perigosa – possa, efetivamente, não só colocar em causa a dinâmica normal dos processos negociais em sede de concertação social ou de negociação coletiva, como promover uma lógica de radicalização que advém da capacidade de afirmar, sem mais, interesses específicos, sem atender aos impactos estruturais que daí advêm.

Quanto ao segundo aspeto, os atuais anseios da classe trabalhadora (desde os setores mais precarizados aos mais corporativistas), nomeadamente as suas camadas mais jovens e mais desligadas do sindicalismo clássico, afastam-se do discurso e da prática das estruturas sindicais, desde logo porque as transformações mais recentes da era da globalização no mundo do trabalho (flexibilização, segmentação, subcontratação, deslocalização, digitalização, precariedade, etc.) reforçaram substancialmente o poder patronal, fragilizando a parte mais vulnerável que tende a ficar tolhida pelo medo de perder o emprego, ainda que este seja deplorável e mal pago.

Mas para além do efeito desse poder sistémico, alinhado com o atual paradigma da economia, não devemos omitir as limitações do movimento sindical dito tradicional, que se debate com um conjunto de dificuldades, impotências e “desatenções”. No modo como atua junto dos segmentos geracionais mais jovens e mais precários (ou os ignora), os que vivem mergulhados nos equipamentos digitais, que comunicam entre si por esses meios e que reconstroem as suas identidades, referências, códigos culturais e modelos de consumo nesse universo “virtual-real”.

As plataformas informáticas e redes sociais, para além de serem objeto de disputa entre as forças do marketing e as do ativismo, revelam-se instrumentos incontornáveis para a consciencialização cívica e a mobilização política. Ora, esse é um universo largamente ignorado pelos dirigentes sindicais. Nuns casos, continuam a reportar-se largamente à era do operariado industrial, noutros casos vivem acantonados em registos rotineiros, absorvidos na gestão de serviços utilitários dentro das estruturas burocráticas e verticalizadas da organização sindical. Acresce que o seu discurso redondo e repetitivo, bem como o não esclarecimento do problema da representatividade sindical e da legitimidade reivindicativa de setores como o “precariado”, os reformados, os jovens, etc., são aspetos que estimulam a desconfiança e o afastamento dos trabalhadores e da sociedade relativamente às estruturas sindicais vigentes.

Ainda assim, é importante sublinhar que o nosso sistema de relações laborais e de direito do trabalho foram estabelecendo, com o contributo e dinâmicas dos sindicatos tradicionais, um padrão de defesa e afirmação dos direitos laborais e sociais que persiste, mesmo nos momentos de exceção e austeridade. Ou seja, os sindicatos tradicionais nunca deixaram cair no esquecimento a defesa do direito do trabalho (sempre posto em causa pelas correntes mais amigas do mercado), por terem consciência de que o trabalho assalariado continua a ser um elemento vital do equilíbrio dinâmico das sociedades democráticas.

Em suma, não vislumbramos nos novos sindicatos qualquer preocupação com estes elementos identitários fundamentais, que estão, e bem, presentes na Constituição Portuguesa. É certo que a dinâmica normal do desenvolvimento e renovação do movimento sindical terá de passar pela ultrapassagem das limitações e desafios a que se deve aduzir ao futuro do trabalho, aos impactos da inovação tecnológica e da digitalização, do desenvolvimento inteligente das novas formas de organização do trabalho. Um elemento essencial ausente desta “novidade” é talvez o mais relevante para uma vida social e laboral numa democracia madura, que são fatores como a “empatia”, o “respeito” e o reconhecimento que deve pautar a existência humana que se espelha na relação das pessoas com as organizações, e das organizações e empresas com as pessoas. 


 
 
pessoas
António Casimiro Ferreira
Elísio Estanque



 
temas
patronato    sindicalismo    greve    relações laborais    trabalho    economia