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18-04-2019        Público

O problema da transparência, tal como o da luta contra a corrupção, é a sua intransparente selectividade. Quem talvez viva mais directamente este problema são os jornalistas de todo mundo que ainda persistem em fazer jornalismo de investigação. Todos tremeram no passado dia 11 de Abril, qualquer que tenha sido o teor dos editoriais dos seus jornais, ante a prisão de Julian Assange, retirado à força da embaixada do Equador em Londres para ser entregue às autoridades norte-americanas que contra ele tinham emitido um pedido de extradição.

As acusações que até agora foram feitas contra ele referem-se a acções que apenas visaram garantir o anonimato da whistleblower Chelsea Manning, ou seja, garantir o anonimato da fonte de informação, uma garantia sem a qual o jornalismo de investigação não é possível. Se os jornalistas são quem vive mais directamente a selectividade da transparência, quem mais sofre as consequências dela é a qualidade da democracia e a credibilidade do dever de prestação de contas a que os governos democráticos estão obrigados. Por que é que a luta pela transparência se dirige a certos alvos políticos e não a outros? Por que é que as revelações nalguns casos são saudadas e produzem efeitos, enquanto noutros são impedidas e, se feitas, são ignoradas? Daí a necessidade de conhecer melhor os critérios que presidem à selectividade.

Claro que o outro lado da selectividade da transparência é a selectividade da luta contra a transparência. Talvez não soubéssemos das perturbadoras revelações da WikiLeaks em 2010 – vídeos militares sobre o assassinato em 2007, no Iraque, de civis desarmados, dois dos quais trabalhavam para a Reuters – se elas não fossem divulgadas amplamente pelos meios de comunicação de referência de todo o mundo. Por que é que toda a sanha persecutória desabou sobre o fundador da WikiLeaks e não sobre esses meios, alguns dos quais ganharam muito dinheiro que nunca reverteu adequadamente para Assange? Porque é que nessa altura os editoriais do New York Times saudavam Assange como o campeão da liberdade de expressão e as revelações como o triunfo da democracia, e o editorial da semana passada considera a sua prisão como o triunfo da “rule of law"? Por que é que o governo do Equador protegeu “os direitos humanos de Assange durante seis anos e dez meses”, nas palavras do presidente Lenin Moreno, e o entregou repentina e informalmente, violando o direito internacional de asilo? Será porque, segundo o New York Times, o novo empréstimo do FMI ao Equador no valor de cerca de quatro mil milhões de dólares teria sido aprovado pelos EUA sob a condição de o Equador entregar Julian Assange? Será porque a WikiLeaks revelou recentemente que Moreno poderia vir a ser acusado de corrupção em face de duas contas, tituladas pelo seu irmão, uma em Belize e outra no Panamá, onde alegadamente terão sido depositadas comissões ilegais?

Quanto à selectividade da luta pela transparência há que distinguir entre os que lutam a partir de fora do sistema político e os que lutam a partir de dentro. Quanto aos primeiros, a sua luta tem, em geral, um efeito democratizador porque denuncia o modo despótico, ilegal e impune como o poder formalmente democrático e legal se exerce na prática para neutralizar resistências ao seu exercício. No caso da WikiLeaks haverá que reconhecer que tem publicado informações que afectam governos e actores políticos de diferentes cores políticas, e este é talvez o seu maior pecado num mundo de rivalidades geopolíticas. A sorte da WikiLeaks mudou quando, em 2016, revelou as práticas ilegais que manipularam as eleições primárias no partido democrático dos EUA para que Hillary Clinton, e não Bernie Sanders, fosse o candidato presidencial, e mais ainda depois de ter mostrado que Hillary Clinton fora a principal responsável pela invasão da Líbia, uma atrocidade pela qual o povo líbio continua a sangrar. Pode objectar-se que a WikiLeaks se tem restringido, em geral, aos governos mais ou menos democráticos do dito mundo eurocêntrico ou nortecêntrico. É possível, mas também é verdade que as revelações que têm sido feitas para além desse mundo colhem muito pouca atenção dos mediadominantes.

A selectividade da luta por parte dos que dominam o sistema político é a que mais dano pode causar à democracia porque quem protagoniza a luta pode, se tiver êxito, aumentar por via não democrática o seu poder. O sistema jurídico-judiciário é hoje o instrumento privilegiado dessa luta. Assistimos nos últimos dias a tentativas desesperadas para justificar a revogação do asilo de Assange e a sua consequente prisão à luz do direito internacional e direito interno dos vários países envolvidos, mas a ninguém escapou que se tratou de um verniz legal para cobrir uma conveniência política ilegal, se não mesmo uma exigência por parte dos EUA.

Mas obviamente que o estudo de caso do abuso do direito para encobrir conveniências políticas internas e imperiais é a prisão do ex-presidente Lula da Silva. O executor desse abuso é Sérgio Moro, acusador, juiz em causa própria, ministro do governo que conquistou o poder graças à prisão de Lula da Silva. Lula da Silva foi processado mediante sórdidos dislates processuais e a violação da hierarquia judicial, foi condenado por um crime que nunca foi provado, e mantido na prisão apesar de o processo não ter transitado em julgado. Daqui a 50 anos, se ainda houver democracia, este caso será estudado como exemplo de como a democracia pode ser destruída pelo exercício abusivo do sistema judicial.

Este é também o caso que melhor ilustra a falta de transparência na selectividade da luta pela transparência. Não é preciso insistir que a prática de promiscuidade entre o poder económico e o poder político vem de longe no Brasil e que cobre todo o espectro político. Nem tão pouco que o ex-presidente Michel Temer pôde terminar o mandato para o qual não fora eleito apesar dos desconchavos financeiros em que alegadamente teria estado envolvido. O importante é saber que a prisão de Lula da Silva foi fundamental para eleger um governo que entregasse os recursos naturais às empresas multinacionais, privatizasse o sistema de pensões, reduzisse ao máximo as políticas sociais e acabasse com a tradicional autonomia da política internacional do Brasil e se rendesse a um alinhamento incondicional com os EUA em tempos de rivalidade geopolítica com a China.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos