Pacheco Pereira (P.P.) acusou recentemente o #Metoo de ser reacionário, puritano e hostil à heterossexualidade, num texto que reduz um movimento diverso e complexo, nas suas tantas expressões geográficas, a uma caricatura.
Antes de tudo, uma clarificação: nada na identidade sexual de P.P. inviabiliza ou desvaloriza o seu contributo para o debate. Casos mediáticos pós-#Metoo como os que atingiram Kevin Spacey e Avital Ronnel envolveram precisamente alegadas vítimas masculinas. O problema do texto de P.P. tão pouco se prende com a falta de “experiência vivida” que supostamente legitima a palavra. O que torna o seu texto tão problemático é a forma como invisibiliza questões centrais do #MeToo e, nesse esforço, ecoa certos lugares-comuns que tanto têm contribuído para a perpetuação da cultura machista que P.P. diz repudiar.
Os começos do Me Too levam-nos à ativista negra norte-americana Tarana Burke. Em 2006, perante a dimensão de assédio e violência sexual que atingia jovens negras de meios sociais desfavorecidos, lançou a campanha Me Too no MySpace, com o objetivo de criar empatia com e entre quem sofrera abuso sexual. Era um movimento direcionado às vítimas, que assumia que a capacidade de estas mulheres superarem as suas experiências traumáticas passava por serem ouvidas com empatia, o que as ajudaria a libertar-se do isolamento e a lidar com a dor e o sentimento de injustiça. Em 2017, no contexto das denúncias ao produtor de Hollywood Harvey Weinstein, o #MeToo tornou-se viral. Tarana Burke reconheceu que, apesar de o meio socioeconómico e as identidades envolvidas serem tão diferentes – nesse momento, as denúncias provinham de atrizes famosas que nunca tinham sofrido racismo –, estava perante uma constelação que Burke conhecia tão bem do seu trabalho comunitário: relações laborais marcadas por fortes desigualdades que permitiam a homens em lugares de poder assediar, chantagear e violar mulheres jovens em situação laboral subalterna.
Sabemos que Tarana Burke tem tecido várias críticas a alguns caminhos e manifestações do #MeToo, sobretudo à obsessão incriminatória de alguma comunicação social sensacionalista na cobertura dos casos mais mediáticos. Burke não deixou, todavia, de apoiar o movimento, incentivando-o sobretudo por, ao criar espaço para discutir as várias dimensões do assédio e da violência sexual, estar a fomentar um debate necessário capaz de contribuir para a mudança social. Nesse sentido, tem-se esforçado, juntamente com outras ativistas, por reclamar o potencial emancipatório do movimento: por um lado, insistindo na necessidade de o movimento voltar a centrar-se nas questões estruturais que fazem com que sejam maioritariamente mulheres a trabalhar em sectores laborais desfavorecidos, frequentemente racializadas ou com estatuto precário (por exemplo, imigrantes), as principais vítimas de assédio e violência sexual; por outro, apelando a que o movimento volte a ter como foco as vítimas de abuso (e não os alegados agressores), investindo em centros e programas de apoio às vítimas. Em suma, exortando a que se reforcem os mecanismos para escutar e prestar apoio a quem sofreu abuso sexual.
Lendo textos como o de P.P. percebemos como estamos longe destes objetivos. Ao falar da “facilidade em acusar sem provas que sejam mais do que impressões, quase sempre a posteriori, P.P. verbaliza uma preocupação legítima (o perigo de rumores e acusações infundadas passarem por factos comprovados) numa argumentação que, porém, escamoteia os contextos complexos que fazem com que tantas vítimas de violência sexual falem das suas experiências apenas a posteriori e na sequência de revelações semelhantes por parte de outras alegadas vítimas. Idealmente viveríamos num mundo em que toda e qualquer pessoa alvo de abuso sexual fosse capaz de reportar o caso de imediato às autoridades de maneira a que se pudessem recolher provas materiais. Não é essa realidade. Como sabemos, o medo de represálias, a vergonha, o sentimento de ter sido parcialmente responsável pelo abuso (consumo de álcool, uma boleia, uma certa roupa...) levam muitas vítimas a não denunciarem os casos de imediato. Muitas outras não têm simplesmente oportunidade de fazer a denúncia. Muitas vezes as vítimas falam dos abusos sexuais apenas após longos anos assombrados por estados depressivos associados a stress pós-traumático, que a certo momento as impelem a denunciar. Noutras é a sensação de que “finalmente” estão perante um ambiente recetivo às suas histórias. É neste sentido que o testemunho “em cadeia” pode ser tão importante para ajudar as vítimas a lidarem com as inevitáveis acusações de calúnia. E foi este o grande contributo do #MeToo: criou espaço para ouvir com empatia histórias silenciadas durante tanto tempo; criou debate público sobre as relações de poder que moldam o assédio e a violência sexual no quotidiano.
Sabemos que o senso comum tende a empolgar o número de denúncias falsas. Sabemos que a maioria das situações de assédio e violência sexual não são sequer levadas a julgamento. Sabemos que são maioritariamente as mulheres que denunciam, e não os homens denunciados, que vêem as suas vidas e as suas carreiras destruídas. Weinstein continua a ser a exceção, não a regra. Perceber as razões destas situações obriga-nos a olhar para tudo o que P.P. teima em omitir do seu texto: por um lado, as relações de poder e as desigualdades socioeconómicas que envolvem grande parte das situações de assédio e abuso sexual; por outro, como a cultura da violação se sustenta em imaginários tradicionais que teimam em estabelecer uma linha irrevogável entre uma minoria de “verdadeiras vítimas” (as violadas “a sério”, capazes de exibir marcas de violência física inegável no corpo) e uma multidão de “outras”, os “casos duvidosos” que pouco mais têm do que o seu testemunho e o seu sofrimento, e que põem em causa a “normal ordem das coisas”.
Em suma, é possível ser-se crítico do #MeToo e combater a cultura machista? Sim, sem dúvida, é possível e até necessário, mas não nos termos propostos por P.P.
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