Os portugueses têm assistido ao longo de décadas a políticas de factos consumados, muito em particular no que diz respeito a opções estruturais da economia e do papel do Estado.
O caminho tem sido o de servir o poder económico e financeiro nacional e internacional, secundarizando os interesses do povo e do país. Ao mesmo tempo os cidadãos vêm sendo torturados em nome do cumprimento das regras "sagradas" da gestão do défice e da dívida, e das determinações europeias. Os direitos fundamentais à saúde, à educação ou a uma vida digna são espremidos ou eliminados em nome da saúde financeira ou quando chocam com as "leis do mercado". Os instrumentos de tortura são os números manipulados conforme as conveniências. E uma governação que privilegia a supremacia plena da finança torna-se, inexoravelmente, em eficaz torturador.
Paira hoje no ar um certo eleitoralismo na ação do Governo, mas não só. Tomemo-lo como próprio da época (sem deixarmos de o combater) e foquemo-nos na observação de uma outra questão mais importante: como e porquê chegamos ao nível de problemas com que nos deparamos no que diz respeito a desequilíbrios regionais, a dificuldades estruturais nas mobilidades, a elevados custos da energia e atrofiamentos de setores estratégicos da economia, a bloqueios do papel e da ação do Estado e da Administração Pública (AP)? Debrucemo-nos sobre as razões de o trabalho ser mal remunerado e haver tanto trabalho de baixa qualidade que afasta a juventude do país.
É por demais evidente que o enorme poder oferecido aos acionistas da ANA no processo da sua privatização - conduzido pelo Governo PSD/CDS - bem como as posições de vantagem da VINCI na exploração da ponte Vasco da Gama, conferem àquela empresa (o Governo reconhece-o) condições dominantes sobre as escolhas para o futuro aeroporto de Lisboa. Hoje não falta quem diga que aquela privatização foi escandalosa. Muitos calaram-se ou apoiaram-na na altura. O Partido Socialista não lhe fez o combate que devia ter feito e o seu Governo atual não pode, de forma alguma, dizer que não há nada a fazer, nem sequer esboçar alternativas.
Na ferrovia as medidas agora anunciadas são prementes, mas continuam bastante insuficientes. Sucessivos governos destruíram impunemente linhas férreas, retardaram respostas afastando passageiros, não reestruturaram como deviam as empresas do setor para que elas pudessem responder às necessidades. O Governo tem de esclarecer mais as suas decisões e identificar em que linhas está a pensar colocar o reforço de material circulante que anunciou. E dizer se será um facto consumado a privatização das ligações ferroviárias mais rentáveis.
O primeiro-ministro diz que é preciso decidir e agir, recuperar tempo perdido. Espera-se que nos meses próximos o Governo assim proceda em áreas importantíssimas.
Que introduza os indispensáveis reequilíbrios na legislação laboral e ajude à revitalização da contratação coletiva, medidas indispensáveis para modernizar as empresas, melhorar a qualidade dos salários e do emprego, travar a emigração e atrair trabalhadores portugueses e estrangeiros qualificados. Que corrija aquilo que está a propor aos trabalhadores da Administração Pública (AP), pois ao não colocar o valor da Remuneração Base (635 euros) na primeira posição da Tabela Remuneratória Única da AP, que garante a proporcionalidade em todas as posições remuneratórias, está a prejudicar todos os trabalhadores do setor e a desrespeitar a lei. Que reforce as capacidades de todo o sistema de ensino, a valorização e dignificação dos professores e que, com as universidades e outros atores, ponha em marcha políticas que possibilitem um muito maior acesso ao Ensino Superior, trazendo para ele, também, um grande número de jovens adultos que estão no mundo do trabalho.
Que se deixe de guerras de números sobre o investimento na saúde e assuma as imperiosas decisões de melhorar e aumentar capacidades estruturais, humanas, técnicas e organizacionais do Sistema Público e defenda o Serviço Nacional de Saúde contra gulas privadas.
Será nestas áreas que se confirmará ou infirmará a efetiva coragem do Governo e o merecimento ou não do apoio dos portugueses.